Espacios. Vol. 37 (Nº 36) Año 2016. Pág. 10
Gilberto Luiz ALVES 1
Recibido: 01/07/16 • Aprobado: 30/07/2016
2. Corumbá, um pouco de história
3. A Casa do Artesão de Corumbá e a comercialização de produtos artesanais
RESUMO: Este artigo objetiva apreender mudanças no comércio de produtos artesanais em Corumbá, MS, bem como sua associação ao turismo, entre 1979 e 2014. Marx, D. Ribeiro, B. Ribeiro, Oliveira e Alves constituem fontes teóricas essenciais. Dados empíricos foram extraídos de fontes secundárias, de documentos e de observações de campo realizadas entre 2010 e 2014. Foram constatados o definhamento do comércio de artesanato indígena, a escassez do artesanato espontâneo, duas manifestações do artesanato induzido, bem como a carência de políticas públicas articuladas a projetos de desenvolvimento regional que dinamizem a relação entre o mercado de produtos artesanais e o turismo. |
ABSTRACT: This paper aims to understand changes occurring, from 1979 to 2014, in the handicraft trade in Corumbá, Mato Grosso do Sul, as well as its association with tourism. Studies of Marx, D. Ribeiro, B. Ribeiro, Oliveira, and Alves are essential theoretical sources. Empirical data were extracted from secondary sources, documents and field observations made between 2010 and 2014. It was noted the weakening of indigenous handicraft trade, the shortage of spontaneous crafts, two manifestations of induced crafts as well as the lack of public policies articulated to regional development projects that streamline the relationship between the handicraft market and tourism. |
Este artigo tem como objeto a comercialização de produtos artesanais em Corumbá, Mato Grosso do Sul. Objetiva apreender mudanças e tendências detectadas nesse processo, bem como sua associação ao turismo. O município em referência é o mais importante do pantanal sul-mato-grossense e detém, no presente, posição de vanguarda em relação a atividades econômicas como a pecuária, a mineração e o turismo de pesca. Sua sede, fundada em 1778, também é a cidade de maior relevância histórico-cultural no Estado. Localiza-se no extremo oeste de Mato Grosso do Sul, está plantada à margem direita do Rio Paraguai e confina com a Bolívia.
Estudos de Marx (2013) sobre o comportamento do mercado, trabalhos antropológicos de Darcy Ribeiro (1980), Berta Ribeiro (1983) e Oliveira (1968; 1976), bem como abordagem de Alves (2014) sobre o artesanato regional constituem fontes teóricas essenciais.
A análise desnuda a relação diretamente proporcional entre o mercado de produtos artesanais e o turismo de pesca, daí sua relevância. É indiscutível que o turismo, a partir da década de 1970, produziu mercado para o artesanato em Mato Grosso do Sul (Alves, 2014). Basicamente ligado ao segmento da pesca, de início, esteve livre de obstáculos à sua realização plena. Já no final do século XX as discussões sobre pesca predatória e escassez do estoque pesqueiro deram origem a proibições, em especial a suspensão anual dessa atividade econômica durante a época da piracema e da procriação das espécies. Desde então, a pesca ganhou caráter sazonal. Portanto, se o mercado de produtos artesanais decorre do turismo, duas hipóteses podem ser deduzidas da descontinuidade que se impôs à pesca: a) o comércio de produtos artesanais deve ter sido impactado pela sazonalidade desse segmento do turismo; b) como consequência, tal solução de continuidade deve ter se refletido na produção artesanal, em especial nas regiões em que o turismo está atado exclusivamente à atividade pesqueira. Corumbá, nesse contexto, é espaço de estudo privilegiado, pois é o mais importante município de quantos se devotam ao turismo de pesca em Mato Grosso do Sul.
O delineamento metodológico coloca-se no campo da pesquisa histórica, sobretudo, e faz uso das fontes de dados pertinentes, mas procura o auxílio, também, de instrumentos da pesquisa antropológica como a observação de campo. O período abordado envolve pouco mais de quarenta anos, desde o início da década de 1970 até 2014.
O conjunto de fontes empíricas, além da historiografia que aborda a matéria, é constituído, basicamente, de registros decorrentes de observações de campo realizadas entre 2010 e 2014, em Campo Grande, Corumbá e cidades intermediárias, Aquidauana e Miranda. Todas se situam na rota da BR 262. O percurso total, entre os dois pontos extremos, gira em torno de 444 km. Depoimentos de personagens ligados à área de cultura e ao comércio de peças artesanais são componentes essenciais desses registros. Lembranças resgatadas pelo autor contribuíram para complementar informações, pois residiu em Corumbá entre 1973 e 1985 e continuou visitando amiúde a cidade. Em meados da década de 1970 viu o surgimento da Casa do Artesão, sediada em antigo presídio da cidade. Frequentou-a e comprou muitos artefatos em suas lojas. Desde sua fundação, esse estabelecimento se tornou a principal referência para a comercialização de produtos artesanais no município.
A década de 1970 foi de notável importância para o incremento das trocas de peças artesanais em Mato Grosso do Sul. A expansão do turismo de pesca e a organização propiciada pelas empresas criadas no setor produziram mercado para esses produtos. Foram salvas da extinção, inclusive, atividades econômicas cujos artefatos eram celebrados como relevantes expressões da singularidade cultural plasmada na região. Foi o caso, por exemplo, da atividade oleira indígena, tanto entre os Kadiwéu quanto entre os Terena. Registros antropológicos das décadas de 1940 e 1960 davam conta da crise que a minava e prometia levá-la, irremediavelmente, à extinção (Ribeiro, D., 1980; Oliveira, 1968). O turismo de pesca, a partir da década de 1970, não somente reanimou a cerâmica indígena e permitiu que se recompusesse como, também, estabeleceu demandas que iriam interferir profundamente nas formas e ornamentações dos artefatos produzidos. A pintura foi incorporada às peças cerâmicas terena. Os produtos de natureza utilitária perderam predominância em favor de miniaturas que os reproduzem e de peças zoomorfas, também miniaturizadas (Alves, 2015). Segundo as percepções das próprias artesãs, essas adaptações passaram a atender melhor aos gostos dos turistas e facilitaram a acomodação das peças adquiridas em suas bagagens (Associação de Mulheres Artesãs de Campo Grande, 2012).
No interior do movimento de expansão do turismo de pesca, já na segunda metade da década de 1970, a recém-criada Casa do Artesão de Corumbá patenteava a diversidade de mercadorias colocadas à disposição dos visitantes. O estoque envolvia desde peças cerâmicas indígenas até artefatos de madeira e trançados. Inclusive algumas pinturas de artistas como Jorapimo encontravam-se expostas.
As referidas peças artesanais disponíveis para troca enquadravam-se nas categorias denominadas artesanato ancestral e artesanato espontâneo. Como essas duas categorias são centrais neste trabalho, além de artesanato induzido, suas acepções precisam ser explicitadas. Diga-se, antes, que elas tomam como referência a organização técnica do trabalho, recurso revelador da natureza individual ou social do trabalho, do nível de domínio do trabalhador sobre a atividade que exerce, bem como do grau de identificação subjetiva de quem trabalha em relação ao produto de seu labor (Marx, 2013).
O artesanato ancestral abrange tanto o artesanato indígena quanto o produzido por grupos sociais precariamente articulados à dinâmica da sociedade capitalista. De caráter coletivo, as atividades artesanais correspondentes tendem a reiterar os procedimentos, as técnicas, a utilização de recursos naturais e a divisão sexual do trabalho praticados por gerações anteriores. O artesanato espontâneo, enquanto tendência geral, é produzido individualmente por pessoas simples, que, no passado, exerceram atividades econômicas que lhes permitiram ter certo domínio teórico-prático compatível ao que, no futuro, se caracterizaria como artesanato de peças ornamentais. O artesanato induzido vem se tornando dominante em nossos dias. Muitas iniciativas entendem o artesanato como alternativa econômica para crianças e jovens que vivem situação de risco nas ruas ou para populações marginalizadas em guetos de pobreza. A instituição mais atuante nessa seara é o SEBRAE, que entende o artesanato como negócio e deseja ver em todo artesão um empreendedor. As exigências do mercado são o norte para o artesão pensar e aperfeiçoar os seus produtos. (Alves, 2014, pp. 5-6)
Para eliminar dúvida, acentue-se, ainda, que o artesanato indígena, mesmo em face do reconhecimento de seu caráter coletivo, é trabalho de natureza individual. No caso da cerâmica, por exemplo, as mulheres constituem a coletividade das artesãs. No âmbito familiar, podem trabalhar ao mesmo tempo, podem compartilhar a fogueira a céu aberto para a queima de suas peças, mas realizam individualmente, com autonomia, todas as operações exigidas pela confecção de seus artefatos cerâmicos. A ruptura em direção ao trabalho social só ocorre quando da incorporação da divisão do trabalho ao processo, pois instaura uma forma de organização que combina as operações de diversos trabalhadores e elimina a necessidade de que tenham o domínio teórico-prático da atividade que realizam como um todo.
No início da década de 1980, o artesanato ancestral exposto na Casa do Artesão de Corumbá era constituído, basicamente, por peças cerâmicas de duas etnias indígenas. Envolvia artefatos de origem kadiwéu, decantados pela beleza de sua ornamentação (Boggiani, 1945; Levi-Straus, 1957; Ribeiro, D., 1980; Ribeiro, B., 1983), e de origem terena, reconhecidos pela sua maior resistência (Ribeiro, B., 1983).
Figura 1: Pote Kadiwéu (Artesã anônima)
Escultura em Argila
Alt. 47 cm. Larg. 31 cm. Prof. 31 cm.
(Década de 2000)
Figura 2: Vaso Terena (Dilma)
Escultura em Argila
Alt. 19 cm. Larg. 12 cm. Prof. 12 cm.
(2012)
O artesanato espontâneo, nesse mesmo estabelecimento, se fazia representar, especialmente, por produtos em madeira. Entre as peças expostas, surpreendiam pela beleza e pela harmonia as miniaturas de canoas guató. Eram réplicas perfeitas desses utensílios usados na pesca, também denominados canoas de um pau só. Ainda peças utilitárias, como gamelas, pilões e petisqueiras eram muito comuns.
Figura 3: Canoa de um pau só (Artesão anônimo)
Madeira Entalhada
Alt. 4,5 cm. Larg. 6 cm. Prof. 31,5 cm.
(Década de 1980)
Tendo em conta a situação descrita em linhas gerais, decorrente do impulso inicial determinado pelo incremento e pela organização do turismo de pesca, a análise foi norteada pela preocupação de detectar as mudanças operadas na produção e comercialização do artesanato em Corumbá, na sequência, e as tendências que delas podem ser deduzidas.
Faz-se necessário destacar a conjuntura histórica vivida por Corumbá na primeira metade da década de 1980. A cidade começava a despertar de uma longa letargia que se iniciara com o fim da hegemonia do transporte fluvial, logo após a implantação da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Até o início do século XX, a cidade fora o grande entreposto comercial do Estado de Mato Grosso. Os navios de médio calado, provenientes das principais metrópoles platinas e do Rio de Janeiro, despejavam mercadorias nos depósitos de suas casas comerciais, que em seguida rumavam para as cidades do interior e do Norte por meio de embarcações de pequeno calado. Suas casas comerciais eram estabelecimentos que mantinham relações econômicas diretamente com empresas comerciais, industriais e bancárias dos grandes centros econômicos do mundo. A chegada da NOB, na década de 1910, rompeu com esse fluxo de relações mercantis, articulado diretamente com praças do exterior. Ligando Mato Grosso com o eixo São Paulo-Santos, a ferrovia fez Campo Grande arrebatar a função econômica antes exercida por Corumbá. A letargia desta cidade se aprofundou progressivamente, desde então. Muitas de suas casas comerciais foram fechadas e abandonadas pelos grandes comerciantes dos portos. Diversos proprietários se evadiram de Mato Grosso. Outros mobilizaram seus capitais em direção à pecuária. Alguns se mantiveram no comércio, mas desde então subordinados às forças econômicas que operavam a partir de São Paulo (Alves, 2005).
Na década de 1970, a decadência de Corumbá tinha como um de seus indicadores o estado de ruína que grassava no sítio arquitetônico constituído pelo Casario do Porto. Outrora símbolo da grandeza econômica da cidade, ele transitara para um notório estado de abandono. O poeta Manoel de Barros descreveu, com a sensibilidade de amante e cantor das coisas do Pantanal, a situação em que se encontravam os “sobrados anciãos” nessa fase.
Descendo a Ladeira Cunha e Cruz embico no Porto.
Aqui é a cidade velha.
O tempo e as águas esculpem escombros nos sobrados anciãos.
Desenham formas de larvas sobre as paredes podres (são trabalhos que se fazem com rupturas – como um poema).
Arbustos de espinhos com florimentos vermelhos desabrem nas pedras.
As ruínas dão árvores!
Nossos sobrados enfrutam. (Barros, 2010, p. 198)
Mas, em 1968, fora criado o Centro Pedagógico de Corumbá, unidade acadêmica que integraria a Universidade Estadual de Mato Grosso a partir de 1970. A consequente formação de massa crítica no interior de seu corpo docente deu visibilidade a bandeiras que começavam a alertar para a importância histórica e cultural de Corumbá, produzindo condições favoráveis à discussão sobre a preservação e recuperação de seu patrimônio arquitetônico. No debate, que se estendeu por mais de quinze anos, ganhou relevo o Casario do Porto, o registro mais emblemático da antiga hegemonia econômica da cidade na região. Culminou esse interregno histórico o álbum Casario do Porto de Corumbá, editado pela Fundação de Cultura de Mato Grosso de Sul. Constituído por três ensaios, tinha por finalidade justificar o tombamento do referido sítio arquitetônico. Os autores eram professores do Centro Universitário de Corumbá, então unidade integrante da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, que resultara da transformação da Universidade Estadual de Mato Grosso em 1978. (Corrêa, V., Corrêa, L., e Alves, 1985).
Em meados da década de 1980, começaram a ser produzidos instrumentos normativos de proteção ao Casario do Porto, decorrentes, em parte, desse ambiente propício criado pelo debate. O Decreto 129/85, firmado pela prefeitura do município, delimitou a área e considerou-a patrimônio histórico e cultural de Corumbá. Sete anos após, a Câmara Municipal aprovou a Lei 1279/92, que criou a Zona Especial de Preservação Ambiental e Paisagística do Porto Geral. Em paralelo, na esfera federal, processo administrativo no interior do IPHAN resultou, por fim, no tombamento da área e de suas edificações em 28 de setembro de 1993. Ao longo desse período o turismo cultural passou a ser reconhecido, ainda, como recurso fundamental para qualquer estratégia de desenvolvimento regional que pudesse ser formulada para o município sul-mato-grossense mais importante do ponto de vista histórico.
Acentue-se que o potencial turístico de Corumbá começara a ser cogitado desde o início da década de 1970. Mas o segmento instaurado foi o turismo de pesca, que, desde suas origens, esteve muito associado à exploração sexual. No final do século XX, o combate à pesca predatória impôs medidas de proteção ao estoque pesqueiro do Pantanal, a exemplo da proibição anual durante o período de reprodução das espécies, que terminaram por fixar um caráter descontínuo ao fluxo turístico. Com o predomínio do turismo de pesca, os percalços para o artesanato tornaram-se patentes. Informações colhidas junto aos instrutores da Casa de Massabarro (2012), por exemplo, confirmam que o volume da produção se intensifica durante o período da pesca. Quando da proibição anual dessa atividade, a letargia do comércio impõe sensível queda à demanda e arrefece o número de peças produzidas.
Com a promessa de incremento do turismo cultural, contudo, a expectativa era a de que o artesanato, atividade reconhecidamente associada ao turismo, recebesse apoio cada vez mais incisivo das políticas públicas na área da cultura. A Casa do Artesão de Corumbá, já existente, deveria ser objeto privilegiado dessas políticas. Daí a sua centralidade para o estudo do artesanato na região, pois pode revelar, como um termômetro, o estágio por ele atingido bem como algumas características do processo cultural como um todo.
Quem visita a Casa do Artesão de Corumbá, atualmente, assiste aos derradeiros estertores do processo de comercialização do artesanato ancestral em suas lojas. Como as peças cerâmicas, em especial, eram originárias de outros municípios, esse estabelecimento se constituía, tão somente, posto de trocas de artesanato kadiwéu, produzido em Bodoquena, e terena, confeccionado em Miranda.
São relevantes e esclarecedores os depoimentos de pessoas que acompanharam o funcionamento do estabelecimento, desde suas origens, como Gilberto Chena Rolon, atual responsável pela Casa do Artesão, servidor público estadual cedido ao Município, Marlene Terezinha Mourão, a Peninha, e José Antonio Garcia, o Tanabi, ambos técnicos da Fundação de Cultura de Corumbá. Segundo eles, as peças cerâmicas eram trazidas à cidade por artesãs indígenas das duas etnias, que utilizavam como meio de transporte os trens de passageiros da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil – NOB. Os artefatos eram acomodados com facilidade nos amplos vagões. Também não se sujeitavam à cobrança de frete, vantagem adicional não desprezível (Casa do Artesão de Corumbá, 2012; 2013).
Mas, no final de 2012, já era patente a ausência de produtos cerâmicos kadiwéu nesse estabelecimento, enquanto não chegava a uma dezena o número das derradeiras peças terena disponíveis. As datas de entrada dessas últimas remontavam à primeira metade da década de 2000, entre 27 de abril de 2000 e 21 de maio de 2005. Um ano mais tarde, em 2013, era notório o esgotamento dos artefatos cerâmicos terena na Casa do Artesão de Corumbá (2012; 2013) sem que houvesse qualquer iniciativa voltada para a reposição de estoque.
Para explicar o desaparecimento dos artefatos indígenas da Casa do Artesão, são dois os motivos alegados por Gilberto Chena Rolon. O primeiro atribui o fato às dificuldades de transporte das peças com a suspensão dos trens de passageiros da NOB desde o dia 06 de janeiro de 1996. O segundo motivo incide sobre o próprio funcionamento da Casa do Artesão, cuja gestão de recursos financeiros sofreu sensível perda de autonomia. Os depoimentos de Marlene Terezinha Mourão e de José Antonio Garcia, além do concedido por Gilberto Chena Rolon, reiteram a informação de que, na década de 1980 e início da década de 1990, os gestores do estabelecimento dispunham de mecanismos administrativos para, com autonomia, comprar mercadorias e realizar o seu abastecimento. Nesse processo, desempenhava papel importante a responsável pela Casa do Artesão, Isabel Bertazzo, que, antes da prestação de contas mensal, administrava diretamente o dinheiro que entrava na tesouraria. Portanto, quando das visitas das artesãs indígenas, ela podia fazer compras à vista. Se eventualmente estivesse desprovida de recursos para realizá-las, acionava proprietários de lojas que comercializavam artesanato na cidade para que adquirissem produtos kadiwéu ou terena. Marlene Terezinha Mourão, à época sócia da Corumbarte, muitas vezes comprou peças indígenas por meio desse tipo de acerto. Mais tarde se estabeleceu a prática de comercialização de produtos em consignação, que impôs a todos os artesãos o pagamento por peça vendida, sem prazo fixo. Sobre os preços contratados passaram a ser acrescidos 20% para suprir os custos de manutenção da entidade. Entende-se porque, mesmo que passivamente, se ergueram as resistências das artesãs indígenas. Agravava o quadro o elevado custo do transporte rodoviário, decorrente das distâncias de mais de 200 quilômetros, percorridas desde as fontes de produção até o posto de trocas. Como resultado, as artesãs teriam deixado de fazer viagens periódicas para abastecer o estabelecimento, abdicando da possibilidade de manter Corumbá no itinerário de suas andanças e negociações (Casa do Artesão de Corumbá, 2012; 2013).
Por ser mais abrangente e levar em conta as determinações do mercado (MARX, 2013), outra explicação parece ser mais elucidativa. Há o reconhecimento generalizado sobre o incremento da comercialização do artesanato onde viceja o turismo. Reforça esse reconhecimento o próprio caso de Mato Grosso do Sul, onde o turismo de pesca salvou o artesanato cerâmico indígena do estrangulamento. Mas o turismo na região, nos últimos trinta anos, ganhou configuração complexa com a emergência de novos polos turísticos. Destaque-se o segmento representado pelo ecoturismo, intensificado a partir do início da década de 1990. No que se refere à comercialização de produtos artesanais, a expansão do ecoturismo evidenciou, em paralelo, a posição menos competitiva de cidades como Corumbá onde predomina o descontínuo turismo de pesca. O caso mais notório é o de Bonito, endereço de ecoturismo difundido no Brasil e além-fronteiras, hoje o principal polo de comercialização de produtos artesanais no Estado. A experiência de Indiana Marques, artesã sul-mato-grossense de sucesso, permite afirmar que, no Estado, “os dois principais polos de consumo são Campo Grande e Bonito”. Os “números do consumo” em seus “pontos de venda” demonstram como o desenvolvimento do artesanato está estreitamente associado ao fluxo turístico. Em Bonito ocorre a venda em torno de cento e cinquenta peças/mês, ao longo de todo o ano, enquanto em Campo Grande os números são expressivos somente nos meses de janeiro, fevereiro, julho e agosto. A média de vendas nesses meses de férias se eleva a trezentas peças. Em alguns dos outros meses a comercialização dos produtos chega a ser ínfima (Alves, 2014, p. 84).
Figura 4: Rotas de comercialização de artesanato em Mato Grosso do Sul
Fonte: Labgeo, Universidade Anhanguera-Uniderp, 2015
Como decorrência da expansão do ecoturismo, duas rodovias asfaltadas interligaram os trezentos quilômetros entre Campo Grande e Bonito. A primeira alternativa transita por Sidrolândia, Nioaque e Jardim. A segunda, mais recente, liga Bonito a Miranda, já na BR 262, depois de passar por Bodoquena. Essa convergência para a região central do ecoturismo e as facilidades criadas pelo transporte rodoviário terminaram por produzir uma nova rota de comercialização de artesanato indígena, colocando por terra a predominância da antiga rota associada à Estrada de Ferro Noroeste do Brasil e ao turismo de pesca.
Municípios próximos de Bonito, como Miranda e Bodoquena, criaram também centros de referência para a comercialização de artesanato indígena local. Esses postos permitem fácil acesso aos turistas que transitam pelas rodovias da região. Jardim, outro município vizinho, vem despontando tanto no ecoturismo quanto na produção de artesanato em osso e comercialização de peças artesanais em geral.
Mesmo que tenha sido asfaltado o trecho da BR 262 entre Miranda e Corumbá, esta cidade localizada no extremo oeste, junto à fronteira com a Bolívia, dista em torno de duzentos e quarenta quilômetros do polo de produção de cerâmica terena mais próximo. A distância de Bonito até o polo oleiro terena de Miranda gira em torno de cem quilômetros. Reduz-se à metade em relação aos centros de produção de cerâmica kadiwéu (Emsampa sem Segredos, 2015). Além de o ecoturismo ter consolidado o mercado de produtos artesanais da cidade, sua proximidade dos polos oleiros indígenas a favorece quanto aos custos de transporte mais reduzidos. Logo, as ceramistas de Miranda e Bodoquena passaram a direcionar seus produtos para Bonito, onde há necessidade de reposição permanente de produtos artesanais e para onde são mais reduzidos os custos de transporte.
Portanto a situação de Corumbá, além da descontinuidade do turismo de pesca, se vê agravada pela grande distância dos polos oleiros indígenas. Esses determinantes conjugados relegaram-na a posição excêntrica na rota das trocas de artefatos indígenas, que hoje envolve um arco composto, principalmente, por Campo Grande, Miranda, Bodoquena e Bonito.
Eis revelado o segredo da retração do comércio de peças artesanais indígenas tanto na Casa do Artesão quanto no âmbito das lojas ligadas à iniciativa privada em Corumbá. As ceramistas terena e kadiwéu já não necessitam percorrer as grandes distâncias que, no passado, as levavam de Miranda e Bodoquena até a longínqua fronteira com a Bolívia. Seus produtos são demandados em cidades próximas onde viceja o ecoturismo.
Há indicadores que evidenciam o baixo consumo de produtos artesanais indígenas em Corumbá, inclusive no âmbito dos estabelecimentos representativos do pequeno capital. Alguns, mesmo não dando exclusividade aos artefatos das etnias indígenas, definharam. Segundo depoimento de Vera Jane de Oliveira, professora e artista plástica residente em Corumbá, muitas lojas foram fechadas. Outras vêm redirecionando seus focos de forma a negligenciar a comercialização de peças constitutivas do artesanato ancestral. A Loja do Porto, estabelecida à Rua Manoel Cavassa, 127, dispõe de uma ponta de estoque de produtos cerâmicos kadiwéu, originários de Bodoquena. Nada indica que tenha interesse em fazer a reposição de mercadorias. A Arte Pantaneira, também estabelecida à Rua Manoel Cavassa, 267, já promoveu a comercialização de peças cerâmicas do artesanato kadiwéu, mas não pretende dar-lhe continuidade. A justificativa alega ser elevado o custo das mercadorias. De fato, nos últimos tempos ocorreu elevação dos custos das peças cerâmicas, pois passaram a ser levadas a Corumbá por intermediário. Com certeza, o lucro deste e o transporte determinaram a elevação dos custos das peças cerâmicas. Talvez desestimulado pelas predisposições negativas dos lojistas, o próprio intermediário suspendeu as visitas à cidade e a venda dos produtos que representava (Lojas de Artesanato em Corumbá, 2013).
O estrangulamento do pequeno comércio de produtos artesanais vem de longe, segundo Marlene Terezinha Mourão. No início da década de 1990, ela e Heloisa Helena Urt eram proprietárias da mais conhecida loja de artesanato de Corumbá, a Corumbarte. Por essa época, o fim do atendimento propiciado à cidade pelo transporte aéreo impactou o mercado de artesanato. Imediatamente, as sócias fecharam a filial, sediada no aeroporto. Mais tarde, por volta de 1996, a inviabilização de lucros fez com que colocassem fim à própria empresa, cuja matriz funcionava na Avenida Marechal Rondon (Casa do Artesão de Corumbá, 2013).
A retração do comércio de produtos artesanais em Corumbá explica, ainda, o porquê de uma artesã guató, Catarina Ramos da Silva, que faz trançados com fibras de camalote, oscilar entre Corumbá e Campo Grande. No início da década de 2010 ela produzia suas peças artesanais em uma das celas da Casa do Artesão de Corumbá, cedida pela Fundação de Cultura do município. Mas isso se estendeu por pouco tempo. Segundo Fabio Pellegrini, estudioso do trabalho realizado por Catarina, as dificuldades geradas pelo precário nível de organização de sua etnia, até recentemente considerada extinta, a fixação de seus descendentes na capital e as promessas de mercado mais promissor motivaram-na a se transferir para Campo Grande. Recentemente retornou mais uma vez a Corumbá, mas nada indica que essa opção seja definitiva. Uma das preocupações da artesã refere-se à transmissão de seu conhecimento teórico-prático às novas gerações. A desorganização da etnia a dificulta, o que ameaça de extinção relevante prática cultural entre os guató. A artesã tem a consciência de que os trançados de fibras do camalote revestem-se de potencial como marca de diferença cultural, podendo tornar-se, portanto, instrumento de afirmação étnica (Pellegrini, 2014). Infelizmente, a ameaça de extinção do conhecimento teórico-prático associado à produção dos trançados, entre os guató, é uma possibilidade emblematicamente configurada pela não fixação da artesã Catarina.
O artesanato espontâneo originário do município também se encontra em franco processo de dissolução. O relevante depoimento de José Antonio Garcia, o Tanabi, reconheceu que as atividades artesanais vêm decaindo progressivamente na cidade, o que se reflete na própria acanhada exposição de produtos na Casa do Artesão. Relacionou diversos artesãos que, por morte ou pela idade avançada, deixaram de produzir artefatos outrora muito procurados. Entre os que usavam a madeira como matéria prima, referiu-se ao Sr. Macário, que produzia pilões e gamelas, ao Sr. Osvaldo, acometido de AVC, fabricante de artefatos como miniaturas de canoas e gamelas, além do Sr. Donato, que, pela idade avançada, deixou de produzir baús, porta-bíblias, porta-vasos e gamelas. Tanabi acentuou que a perda dessas figuras representará o fim das atividades artesanais correspondentes. “Nada restará, tudo acabará”, disse ele, pois não existem sucessores. De fato, a observação confirma que estão rareando as manifestações do artesanato espontâneo em Corumbá (Casa do Artesão de Corumbá, 2013).
Entre os artesãos espontâneos, caracterizados pela forte identificação subjetiva com os produtos de suas atividades, os sobreviventes têm deixado de se devotar à produção contínua de peças que, pela perfeição e equilíbrio de suas formas, os turistas buscavam para ornamentar espaços de suas residências. Há aqueles que, mesmo em condições de produzir, já não consideram o artesanato uma atividade lucrativa. Em consequência, o ritmo da produção é afetado o que desencadeia o desaparecimento de artefatos como as miniaturas das canoas de um pau só na Casa do Artesão.
Logo, quando escasseiam nesse estabelecimento as peças dos principais artesãos espontâneos residentes em Corumbá, ainda produtivos, são notórios os riscos de extinção das atividades correspondentes ou de debandada daqueles que as produzem para outras ocupações mais promissoras.
Davi Ferreira Nazário, que produz cestos de salsaparrilha, mesmo manifestando o prazer que lhe dá a realização de seu fazer, revela insatisfação com os rendimentos de sua atividade e cogita se bandear para “coisa melhor”.
Hoje sou homem casado, tenho família, estou sobrevivendo. Não tive um grande momento profissional na vida. (...). Não consegui adquirir nada até hoje. Vivo de aluguel. Se continuar assim, prefiro mudar e largar a cestaria de salsaparrilha. Se eu achar coisa melhor eu vou parar com artesanato. (Apud Pellegrini, 2011, p. 95)
As peças em madeira de Edson Alves da Cruz também rarearam. Esse artesão continua ativo, mas prefere trabalhar por encomenda. Por iniciativa própria, segundo Andriolli Costa, estabeleceu laço comercial com um hotel da cidade que lhe permite incrementar as vendas. Depois de reconhecer que seus principais clientes eram “estrangeiros”, aproveitou o fato de o hotel em referência dispor de uma grande peça de sua autoria, um jacaré. Os clientes que manifestam interesse pelo artefato são imediatamente convidados para conhecer a oficina do artesão. Quando as visitas resultam em vendas, o hotel recebe 10% relativos ao valor total. Como todos os demais, o artesão corumbaense confirma a dependência do volume de vendas em relação ao turismo de pesca. “Em tempo de piracema ou decoada, não vem turista pra cá. E aí é prejuízo pra gente, quase não sai peça.” (Apud Costa, 2011, p. 120)
Em Corumbá pontifica um raro caso de artesanato espontâneo que vicejou e ganhou visibilidade sem, contudo, estar ligado às forças internas do processo cultural tal como se engendrou na região. Trata-se de Gena Barreto, artesã portuguesa, que ao visitar a cidade se encantou e fixou residência. Ceramista que em Portugal se entregava à produção do que ela chamava “casinhas”, viu nas formas arquitetônicas dos edifícios corumbaenses motivos inspiradores para suas criações. Sua habilidade, desde então, começou a plasmar magníficas reproduções dos seculares casarões, em especial dos constitutivos do Casario do Porto.
Os artefatos produzidos por Gena são escassamente comercializados na Casa do Artesão, onde é notória a sua exígua quantidade. A artesã tem realizado, preferencialmente, a venda direta de suas “casinhas”. Por isso, o seu ateliê se transformou, também, no endereço de referência para todos os que se interessam por suas peças e desejam adquiri-las (“Casinhas” de Gena Barreto, 2012).
Uma tendência já constatada no quadro geral do artesanato em Mato Grosso do Sul revela-se consistente também em Corumbá. Enquanto o artesanato ancestral e o artesanato espontâneo perdem espaço, manifestações do artesanato induzido ganham vigor (Alves, 2014). Nesse município as experiências induzidas são poucas, mas duas delas merecem considerações detidas. A primeira refere-se à Casa de Massabarro, iniciativa filantrópica de alguns cidadãos corumbaenses. A segunda é o Projeto Amor-Peixe, induzida pela WWF-Brasil.
A Casa de Massabarro, devotada ao artesanato cerâmico, está instalada no Bairro da Cervejaria, região habitada por trabalhadores pobres. Preocupados com as crianças que perambulavam ociosas pelas ruas desse bairro, alguns cidadãos se organizaram e criaram a entidade. Visando direcionar seus usuários para atividade que lhes assegurasse renda, um desses benfeitores, Gabriel Vandoni de Barros, cedeu terreno e construiu a sede. Dentre os primeiros aprendizes, alguns amadureceram e, atualmente, são instrutores dos jovens que a frequentam. Há egressos que se projetaram e hoje são reconhecidos como artesãos consagrados em Mato Grosso do Sul (Casa de Massabarro, 2010). O principal deles, Denilson Pinto de Oliveira, em 1999 se transferiu para a Capital do Estado. Por certo, as consequências da descontinuidade do turismo de pesca em Corumbá e a decorrente busca por maior demanda para seus artefatos cerâmicos interferiram na decisão do jovem que desejava devotar-se inteiramente ao artesanato. Um analista de sua obra foi taxativo ao afirmar que Denilson reconheceu Campo Grande como “o melhor local para produzir e comercializar seu artesanato” (Valdez, 2011, p. 107).
Quanto ao funcionamento da Casa de Massabarro, não há horários fixos para os que a ela acorrem. Cria dificuldade para a consecução de sua finalidade a própria legislação brasileira que pune tudo aquilo que pode ser enquadrado como trabalho infantil. Mas os jovens que insistem em produzir peças cerâmicas dentro da Casa de Massabarro auferem 80% do valor de seus produtos comercializados. O desconto serve para suprir as despesas da entidade principalmente com energia elétrica, água e embalagens. A matéria prima é obtida a custo zero, pois um empresário da cidade, proprietário de indústria cerâmica, doa peças quebradas ou recusadas no processo de controle de qualidade. Essas peças são moídas e reidratadas para voltar à sua forma original e servir ao labor dos aprendizes.
Motivos sacros ou zoomorfos dominam formalmente os artefatos produzidos. Dentre as imagens sacras, as de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Pantanal avultam. O santo encontra-se sempre cercado de animais e aves típicos da região, enquanto a Virgem do Pantanal veste um manto adornado de camalotes. As imagens zoomorfas reproduzem, igualmente, o que abunda na natureza circundante: tuiuiús, garças, joão-de-barros, tucanos, araras, jacarés, capivaras e onças. A comercialização da produção se realiza, predominantemente, na própria sede da entidade.
O movimento de vendas da Casa de Massabarro está associado diretamente ao turismo de pesca. Como já foi dito, a descontinuidade desse segmento do turismo impõe um movimento de fluxo e refluxo à comercialização dos artefatos cerâmicos. Quando se instaura o período de proibição da pesca, o ritmo de produção desacelera e beira a letargia (Casa de Massabarro, 2010).
Além da descontinuidade do turismo de pesca, outro fator que pesa contra a possibilidade de incremento à produção é a fragilidade das peças cerâmicas. Entre as inovações que se fazem necessárias para a ampliação do mercado, ganham relevo as que afetam a resistência das mercadorias ao transporte e à manipulação nos postos de venda. O processo de queima, ainda precário, compromete o tempo de duração das peças. Segundo um artesão e instrutor, Enilson, os suportes de arames usados para conferir estrutura e forma às esculturas cedem às altas temperaturas, daí sua limitação para algo em torno de 650 graus centígrados (Casa de Massabarro, 2010). Como decorrência, as peças produzidas são quebradiças, pois de resistência precária. Não há dúvida de que, pela criatividade, pela originalidade, pelo esmero na execução e pela beleza formal, os artefatos de alguns artesãos mais experientes chegam a se configurar como objetos de arte. São exemplos as imagens de Nossa Senhora do Pantanal e de São Francisco de Assis produzidas pelo próprio Enilson. Mas isso representa, tão somente, um dos aspectos constitutivos de seu potencial de realização no mercado. Esse aspecto pouco significa caso não sejam viabilizadas inovações que garantam maior resistência e duração aos produtos, requisitos essenciais à expansão do consumo.
Já o Projeto Amor-Peixe, induzido pela WWF-Brasil, devota-se à produção de artefatos que têm como matéria prima o couro de peixe. Depois de reunir um grupo de trabalhadoras, formado dominantemente por mulheres de pescadores, organizou-as por meio de uma associação que, com a autorização da Fundação de Cultura de Corumbá, instalou sua oficina em espaço da Casa do Artesão.
Digno de atenção, no caso do Projeto Amor-Peixe, é o caminho percorrido para que se viabilizasse. Em sua primeira fase, instaurada em 2003, o personalismo da presidenta, Wânia Alecrim, se sobrepôs ao grupo. Em detrimento do mérito das demais participantes da entidade, no ano de 2006 ela recebeu dois prêmios: “Mulher Revelação na categoria Trabalho Social”, concedido pela revista Claudia, e “Mulher Empreendedora”, conferido pelo SEBRAE (Amor-Peixe, 2011, p. 23). Em seguida, ao se decidir pelo afastamento da associação, estabeleceu-se a crise no interior do projeto e desarticulação dessa fase. Profunda mudança ocorreu em 2007, quando se instaurou a segunda fase do Amor-Peixe. Todo o esforço foi dirigido no sentido de criar espírito associativo nas mulheres do grupo, então renovado em função das defecções anteriores e inclusão de novos membros. Rodízios foram estabelecidos para que todas se beneficiassem das participações em cursos, oficinas, encontros, feiras e rodas de negócios. Desde então, o projeto cresceu e alcançou, após dez anos, sua autossuficiência. Essa história foi documentada detalhadamente em publicação oficial da WWF-Brasil, intitulada Amor-Peixe: modelo de desenvolvimento sustentável (2011).
Tal publicação revelou, ainda, que o germe da iniciativa se radicou no Projeto Reciclando Peixe, implantado em 2002. Mas o Amor-Peixe não foi preocupação única desse projeto da WWF-Brasil. Na mesma época, em Miranda foi estimulado o projeto Art Peixe e, em Coxim, o projeto Ar-Peixe. O de Miranda rapidamente definhou, enquanto o de Coxim, ao mudar o seu percurso e as suas intenções, teria seguido “modelo de negócios do SEBRAE que, na visão da WWF-Brasil, perdeu o sentido de pertencimento local e identidade original, seguindo unicamente a lógica do mercado, sem fortalecer os territórios da pesca nem a cultura pantaneira” (Amor-Peixe, 2011, pp. 22-23).
A justificativa do projeto Amor-Peixe, em Corumbá, tem recorrido, sistematicamente, a princípios que apelam para o respeito à cultura local, para a consciência ecológica e para a educação ambiental. Mas, o conceito de cultura local padece de indefinição. De fato, não há na referida publicação qualquer entendimento explícito do que seria, nem o que seria cultura pantaneira, forma aparentemente sinônima usada no texto. Quando são arrolados, de forma esquemática, os elementos fundantes do projeto, a cultura pantaneira é reduzida ao aproveitamento dos recursos naturais locais e, como afirma explicitamente o documento, ao “uso da iconografia [pertinente] nos produtos”, cuja fonte é buscada na flora e na fauna do ambiente circundante. (Amor-Peixe, 2011, p. 32)
Essa formulação, para além de seu reducionismo, revela uma limitação do projeto, pois na produção dos seus artefatos tem predominado o uso do couro de tilápia, espécie de peixe exótica. A fonte da matéria prima é o Frigorífico Mar e Terra, situado no município de Itaporã, sul do Estado. As descrições contidas no catálogo intitulado Amor-Peixe: artesanato, preservação ambiental e geração de renda no Pantanal (s.d.) confirmam esse fato. Parece que os participantes do projeto têm alguma consciência da distorção, tanto que se propõem, “no futuro”, a usar o couro de peixes do Pantanal. Mas essa possibilidade de uso de recurso natural local cria novas necessidades, pois exige a utilização de técnicas de tratamento de “couro mais duro” ainda não dominadas (Amor-Peixe, 2011, p. 41). Caso tal incoerência não seja superada, o Amor-Peixe estará se aproximando, pelo menos no aspecto referente ao aproveitamento de recursos naturais, do criticado projeto de Coxim.
A pauta de mercadorias produzidas é muito diversificada, pois abrange desde bolsas sociais, bolsas casuais, bolsas-carteiras, acessórios, cintos e calçados, bijuterias, chaveiros, até carteiras e agendas (Amor-Peixe, s.d.). Mas o vigor e a autossuficiência do projeto vão além. A sua inserção no mercado é indicador explicativo da própria diversificação dos produtos. Ao longo de dez anos de existência, seu esforço foi o de desvencilhar-se da dependência em face das condições locais, expressas pelas dimensões estreitas do mercado e pela descontinuidade do turismo de pesca. Daí a participação da associação em feiras, rodas de negócios e eventos estaduais e nacionais, reconhecendo, inclusive, que, por meio deles, se viabilizou o escoamento de expressivo volume de produtos. Em outubro de 2009, por exemplo, “a Amor-Peixe foi contratada pelo Ministério da Aquicultura e Pesca e forneceu 800 bolsas de couro para os participantes” da 3ª. Conferência Nacional de Aquicultura e Pesca (Amor-Peixe, 2001, p. 36).
Com a autossuficiência do Amor-Arte, em 2011 a WWF-Brasil considerou concluída sua missão e oportuno seu afastamento, baseando-se no reconhecimento de que a associação correspondente, já consolidada, estaria em condições de dar-lhe direção e de expandi-lo.
Por fim, verificou-se a consistência, em Corumbá, de uma tendência já apontada em estudo que realizou análise panorâmica do artesanato sul-mato-grossense como um todo (Alves, 2014). As formas de artesanato induzido, ao promoverem o “espírito empreendedor” e a organização dos trabalhadores no interior de associações, incentivam também a produção com escala, bem como a dedicação plena dos participantes à atividade artesanal correspondente. Instaura-se a necessidade de ampliação do mercado, daí a busca por maior produtividade do trabalho. A divisão do trabalho se impõe como resposta imediata. No caso específico da Associação Amor-Peixe, entidade em 2011 presidida por Joana Ferreira de Campos, a divisão do trabalho transparece na própria apresentação das associadas, contida em publicação oficial. Funções administrativas podem ser atribuídas ocasionalmente às integrantes, mas, no âmbito da organização técnica do trabalho, as operações realizadas pelas trabalhadoras são precisas e claras: Marilza Maria de Campos atua no controle de qualidade e em colagem; Maria Auxiliadora Echeverria Fernandes é costureira, bem como Cristiane de Souza, Francisca Garcia da Silva, Maria Joaquina de Souza, Keila Mariano da Silva e Vera Lucia de Souza de Almeida; Clara da Silva Zenteno realiza curtimento e tingimento; Isabel Cristina Silva de Oliveira e Greice Hellen Damasceno Pires fazem colagem de bijuterias; Zoraide Castelão Celesque realiza tanto colagem de bijuterias quanto curtimento e tingimento; por fim, Rita Conceição da Silva é fiscal de qualidade e do trabalho (Amor-Peixe, s.d., p. 73). Esse fato permite concluir que a organização técnica do trabalho no âmbito do projeto já transitou para a manufatura. A rigor, já não se trata de atividade que possa ser qualificada como artesanato. Esse reconhecimento nada tem de depreciativo contra o projeto Amor-Peixe, pois só alerta para o caráter anacrônico das formulações que alardeiam, superficial e falsamente, sua natureza artesanal.
As duas hipóteses norteadoras do trabalho foram confirmadas. Em Corumbá, tanto o comércio como a produção de artefatos artesanais foram impactados pela descontinuidade imposta à atividade pesqueira e, como decorrência, ao turismo de pesca. Existe uma relação diretamente proporcional entre o turismo, por um lado, e a produção e comercialização de peças artesanais, de outro. Desdobrando as conclusões, pode-se afirmar que nessa cidade, hoje,
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1. Professor do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional da Universidade Anhanguera-Uniderp, Campo Grande, Mato Grosso do Sul (Email: gilbertoalves9@uol.com.br)