Espacios. Espacios. Vol. 30 (4) 2009. Pág. 6

Prática Alimentar e as Religiões: Comportamento Funcionalista versus Hedônico

Eating Habits and Religions in Brazil: Utilitarian versus Hedonic Consumption

Hábitos alimenticios y religiosos en Brasil: Consumo utilitario vs consumo hedónico

Maria de Fátima Evangelista Menonça Lima y Dario de Oliveira Lima-Filho


Alimentação e Religião

A alimentação está envolta nos mais diversos significados, desde o âmbito cultural até as experiências pessoais. Nas práticas alimentares, que vão dos procedimentos relacionados à preparação do alimento ao seu consumo propriamente dito, a subjetividade veiculada inclui a identidade cultural, a condição social, a religião, a memória familiar (Diez Garcia, 1997).

A relação entre o objetivo de alimentar-se e as doutrinas religiosas é colcada por Carneiro (2003, p. 119):

As regras alimentares servem como rituais instauradores de disciplinas, de técnicas de autocontrole que vigiam a mais insidiosa, diuturna e permanente tentação. Domá-la é domar a si mesmo, daí a importância da técnica religiosa dos jejuns, cujo resultado também permite a obtenção de estados de consciência alterada propícios ao êxtase. As regras disciplinares sobre alimentação podem ser anti-hedonistas, evitando o prazer produzido pelo alimento tornando-o o mais insípido possível, ou podem ser pragmáticas, ao evitar alimentos que sejam demasiadamente ‘quentes’ ou ‘passionais’. Os herbários medievais identificavam em diversos alimentos, tais como as cenouras ou alcachofras, fontes de excitação sexual. As regras budistas eliminam até mesmo a cebola, a cebolinha e o alho, por considerarem que essas inflamam as paixões.

A religião envolve o alimento de maneira tão numerosa como diversa. A abstenção e a presença do alimento servem como marcadores religiosos. O ramadan1, assim como o kosher2 e o halal3, são os lembretes populares mais famosos das ligações existentes entre a religião e o alimento (Desjardins, 2004).

Algumas culturas vêem o alimento exclusivamente como fonte de energia e saúde, enquanto outras têm um senso maior de apreciação da complexidade da preparação e do processo de degustação do alimento. Denomina-se a primeira perspectiva de utilitarista (funcionalista) e a segunda de hedonismo. A percepção utilitarista do consumo de alimentos tem o foco no aspecto funcional do alimento, desejo de praticidade e atenção ao fator nutricional; enquanto a percepção hedônica tem ênfase no sabor, na elaboração, na extravagância e no prazer proporcionado pelo alimento (Wansink, Sonka & Cheney, 2002).

Max Weber na sua obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo” (Weber, 1905 / 1987) afirma que o dogma central do protestantismo, e de todos os seus ramos, é que a única forma de viver de maneira aceitável a Deus não está na superação da moralidade secular pela ascese monástica, mas sim no cumprimento das tarefas “do século”, imposta ao indivíduo pela sua posição no mundo. O protestantismo baseia-se na crença de que se pode servir a Deus no chamado pessoal secular, vivendo uma vida disciplinada.

A disciplina monástica e ascética do protestantismo, para Weber, estabelece que o dinheiro ganho não deve ser gasto em divertimento ou conforto, mas deve ser usado diretamente como investimento para gerar mais dinheiro; o protestantismo adota como virtudes, a laboriosidade, a praticidade e a necessidade de remir o tempo. Essa noções difundidas pelas doutrinas protestantes estão mais associadas à racionalidade, à prática alimentar funcionalista.

Segundo Poulain (2004), o surgimento da gastronomia deve muito ao catolicismo, pois os dogmas, preceitos e recomendações desta religião abriram um precedente para os fiéis seculares, para se ter uma vida voltada para o prazer, e sem essa base a gastronomia perderia sua essência. Esse também é um dos motivos que justificam a tradição de países latinos – com fortes fundamentos católicos, como França e Itália – na ciência da gastronomia. A estetização da alimentação, o aparecimento de um hedonismo alimentar, deve muito à atitude moral do catolicismo.

No ideário do catolicismo reina uma tendência, também quanto aos alimentos, que vai da temperança agostiniana a uma atitude hedonista que coloca, para o homem empenhado no serviço da fé, o gozo dos bens terrestres como uma glorificação da obra de Deus. Como se houvesse a possibilidade de sacralizar o alimento, apropriando-se de um pouco de Deus ao comer boas coisas (Poulain, 2004).

A tendência hedonista do catolicismo também aparece no Catecismo da Igreja Católica Aostólica Romana. Nele está colocada a doutrina da “Unção dos Enfermos” ou “Extrema Unção”, quando no momento da morte, todos os pecados podem ser perdoados e a salvação pode ser concedida. Tal doutrina não existe no protestantismo (Catecismo..., 2006). Em outras palavras, os católicos podem se exceder no consumo durante a vida, inclusive na alimentação, que poderão ser perdoados na hora da morte; no protestantismo, não há perdão, ou seja, a vida sem excesso, uma norma, não precisa de perdão.

Países latinos, com profundas raízes católicas, possuem hábitos alimentares mais ligados à linha do hedonismo, pois valorizam pratos tradicionalistas, consideram a apresentação e a textura do alimento tão importante quanto o sabor e têm a tendência de priorizar o sabor à nutrição. Os países de origem anglo-saxônica e com raízes no protestantismo, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, possuem hábitos diferentes, valorizando mais os atributos funcionalidade, rapidez, praticidade e nutrição (Wansink e cols., 2002).

Aliás, essa última vertente, ou seja, a funcional, tem sido a adotada na sociedade ocidental contemporânea. Hoje, parece que as pessoas não comem carne, maçã, pães, por exemplo, mas quantidades de vitaminas, de fibra, de minerais, de ácidos graxos poli-insaturados, mono-insaturados ou saturados, de hidratos de carbono, lipídios, ácido fólico, calorias, “aditivos” diversos etc. As categorias mediante as quais os alimentos são percebidos e classificados parecem ter se modificado no sentido de uma maior fragmentação impulsionada pela ciência (Contreras, 1995).

Procedimentos Metodológicos

O presente trabalho é um estudo exploratório qualitativo (Cooper & Schindler, 2003), abrangendo a população de Católicos Apóstólicos Romanos e protestantes (Adventistas do Sétimo Dia), de Campo Grande/MS, com idade igual ou superior a 18 anos.

A amostra foi constituída de 20 pessoas, sendo 10 de cada grupo, todas frequentadoras habituais de templos de uma das religões estudadas há pelo menos dois anos. A escolha dos sujeitos da pesquisa foi feita intencionalmente, em função da disponibilidade dos entrevistados em contribuir com a pesquisa, como sugere Malhotra (2001).

A técnica utilizada para a coleta de dados foi a entrevista individual em profundidade, com uso de roteiro semi-estruturado e os respondentes tinham a liberdade e eram encorajados a expressarem livremente suas percepções, crenças, valores, opiniões, experiências, atitudes, estilo de vida, comportamentos e intenções (Mattar, 1996). Cada entrevista teve uma duração média de 30 minutos, sendo gravada com a anuência do entrevistado, e se deu no domicílio do sujeito.

A análise dos dados foi feita com base na técnica de análise de conteúdo (Bardin, 1977), que mede o conteúdo semântico da mensagem, além de buscar entender as entrelinhas da mensagem, ou seja, o que está por trás das palavras.

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1. Lei civil e religiosa que proíbe durante um determinado mês no ano a ingestão de comida ou água e o consumo de cigarros antes que o sol se ponha.
2.É a definição dada aos alimentos preparados de acordo com as leis judaicas de alimentação.
3. É a definição dada aos alimentos preparados de acordo com as leis mulçumanas de alimentação.

Vol. 30 (4) 2009
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