Espacios. Espacios. Vol. 30 (4) 2009. Pág. 7

Prática Alimentar e as Religiões: Comportamento Funcionalista versus Hedônico

Eating Habits and Religions in Brazil: Utilitarian versus Hedonic Consumption

Hábitos alimenticios y religiosos en Brasil: Consumo utilitario vs consumo hedónico

Maria de Fátima Evangelista Menonça Lima y Dario de Oliveira Lima-Filho


Resultados e Discussão

Das dez pessoas católicas entrevistadas, sete eram do sexo feminino e três do sexo masculino. Dos dez protestantes (adventistas), seis eram do sexo feminino e quatro do sexo masculino. Essa divisão de gênero deveu-se, principalmente, à disponibilidade dos entrevistados em participar da pesquisa.

Quanto à escolaridade, todos tinham, no mínimo, nível médio completo Este grau de formação permitiu um bom entendimento das questões, o que garantiu manifestações claras. Os católicos entrevistados disseram se manter fiéis à sua doutrina, não migrando para outras religiões, enquanto que todos os adventistas migraram, pelo menos uma vez, para outras seitas antes da atual. Os adventistas entrevistados relataram contato com os valores de ambos os grupos, pois todos foram católicos antes de mudarem de religião, apesar de não se saber se eram frequentadores habituais e, portanto, se praticavam a fé católica e seus preceitos. Todos os entrevistados consideravam-se ativos em suas religiões, isto é, eram católicos e adventistas praticantes. Os adventistas entrevistados eram tradicionais, nenhum deles fazia parte das ramificações do “adventismo”.

No momento da realização da entrevista apenas um dos entrevistados, uma católica, estava em dieta ou controle alimentar; nenhum dos demais entrevistados disse possuir qualquer problema de saúde que exigisse uma restrição alimentar ou uma dieta diferenciada por prescrição médica.

Os adventistas têm restrição alimentar imposta pela religião. É uma norma da Igreja Adventista tradicional a proibição a carne de porco, por este animal ser considerado impuro. Também é proibido comer carne de animais sufocados, bem como seu sangue, norma baseada na tradição judaica e na Lei de Moisés do Antigo Testamento.

Já entre os católicos não existe nenhuma restrição específica em relação à alimentação habitual; uma das entrevistadas fez referência a uma passagem bíblica de Mt 15:11, em que Jesus diz que não é o que entra na boca que torna o homem impuro, mas o que sai da boca; isso, sim, torna o homem impuro. Além desta observação, os entrevistados católicos afirmaram ter recomendações da Igreja Católica para abster-se de carne vermelha em determinados dias, como a Sexta-feira Santa, e as recomendações ao jejum para limpar o corpo e a mente.

Dos entrevistados, nove adventistas apresentaram uma definição de utilitarismo coerente com a teoria, apenas uma entrevistada caracterizou utilitarismo como um “mal necessário”, sem, no entanto, se referir que tipo de mal. Entre os católicos foi dada relevância à questão da nutrição, mas nunca dissociado do prazer.

Alimento útil, pra mim, é aquele que me economiza esforço físico, esforço mental e me fornece tudo que preciso para ter uma vida saudável, afinal comida serve para isso não é? (Ana Maria, 46 anos, adventista).

Todos os entrevistados, católicos e adventistas, caracterizaram hedonismo como aquilo que dá prazer, que proporciona alegria, só que momentânea; algo que satisfaz os desejos, mas ambos os grupos religiosos afirmaram que o prazer por si só não tem sentido, ele não pode ser o único fim da vida. Na opinião dos católicos, é necessário que haja um equilíbrio, ou seja, que o prazer de comer esteja associado a alguma funcionalidade.

A busca pelo prazer parece ter sido a base da gastronomia, marcando várias gerações e criado um estilo de vida que, por muito tempo, foi adotado como padrão nos países de origem latina e católica (Poulain, 2004); entretanto, esse pensamento vem perdendo espaço, principalmente, devido ao avanço da disponibilidade de informação e da tecnologia. As implicações disso é que mesmo os indivíduos católicos, a princípio considerados hedonistas, passaram a ter uma vida mais regrada quanto à alimentação, visando, principalmente, à preservação da saúde.

Muitas vezes comemos além do que deveríamos, portanto é preciso cada um adquirir consciência do próprio limite. Não se pode abrir mão daquilo que faz bem para a sua saúde (Maura, 18 anos, católica). Acredito ser os dois (utilitarista e hedonista), como por prazer, mas sem esquecer da utilidade do alimento (Lauro, 22 anos, católico).

A freqüência das refeições e como elas são distribuídas ao longo do dia são semelhantes entre os dois grupos religiosos, ou seja, ambos consomem alimentos semelhantes nessas refeições. Não se pode afirmar, por meio dos alimentos consumidos pelos membros das duas religiões, qual grupo possui características hedonistas e qual possui características funcionalistas.

No aspecto da freqüência das refeições, a única diferença é que seis dos dez entrevistados adventistas citaram que acham importante consumir alimentos de 3 em 3 horas por ser uma prática saudável, apesar de não possuírem esse hábito. Enquanto que nenhum dos entrevistados católicos atentou para tal fato, porém duas entrevistadas fazem as refeições de 3 em 3 horas para manter uma vida saudável.

Com relação aos hábitos de consumo, foi observada uma forte tendência, nos dois grupos, a uma preferência maior ao sabor dos alimentos consumidos em detrimento de outros atributos; foram citados por católicos e adventistas, em menor freqüência, o valor nutritivo e a facilidade de preparo dos pratos.

Foi solicitado aos entrevistados que falassem de algum restaurante de sua preferência na cidade, para verificar, a partir das características deste, qual a preferêcia alimentar dos entrevistados. Observou-se que tanto católicos quanto adventistas, apesar de não terem indicados os mesmos locais, escolheram formatos de restaurante que fica claro o comportamento hedonista, mesmo fazendo referências tanto ao sabor quanto à qualidade dos alimentos.

Vale salientar que os dois grupos afirmaram não ir com muita freqüência a restaurantes, somente em datas especiais ou em alguns finais de semana, demonstrando ser algo esporádico; para eles o restaurante possibilita mais prazer que as refeições cotidianas feitas em casa.

Verificou-se, também, que mesmo o comportamento funcionalista dá lugar ao hedonismo em ocasiões especiais. Quando perguntados como empregam o seu dinheiro e qual seu principal gasto, 14 pessoas afirmaram que a alimentação se constitui no item mais importante do orçamento familiar. Uma católica afirmou gastar uma boa parcela de seu salário com materiais necessários para a faculdade; um adventista ressaltou que emprega a maior parte dos proventos em seus estudos e desenvolvimento profissional, refletindo um comportamento utilitarista. Respondendo a essa mesma questão, uma adventista, pertencente à igreja há apenas dois anos, afirmou gastar a maior parte de seu salário com roupas, o que pode vir a caracterizar um comportamento hedonista.

Todos os entrevistados pertenciam a familias com renda superior a sete salários mínimos. Entre os mais velhos, a alimentação se constitui no principal gasto, principalmente por terem de sustentar uma família com, pelo menos, três pessoas; entre os mais jovens, a razão de a alimentação ser apontada como a principal despesa é por estar associada à diversão. No lazer dos jovens está incorporado o gasto com alimentação.

Os entrevistados foram questionados a respeito do gozo dos bens terrestres, como glorificação a Deus, aspecto comum aos que comungam com um pensamento religioso. Sete adventistas responderam que os gozos e prazeres terrestres não são glorificações divinas, mas glorificação ao satanás; os demais deram respostas neutras.

Todo gozo e prazer que vem dos bens aqui da terra são na verdade uma glorificação de satanás, pois ele é o príncipe deste mundo, sendo assim, tudo que provém deste mundo é para a glorificação dele (Marco Aurélio, 56 anos, adventista).

Os prazeres terrestres não são de forma alguma glorificação divina, mas sim algo que nos desvia e distrai dos caminhos de Deus (César Augusto, 35 anos adventista).

O que possuímos na terra não é para o nosso puro e simples prazer, o Senhor nos dá aquilo que precisamos, tudo que temos na terra é para administrarmos visando o porvir (Camila, 22 anos, adventista).

Apesar das palavras acima, uma das adventistas afirmou gastar a maior parte de seu salário com entretenimento, tais como cinema, locação de filmes e sair para comer, contradizendo os preceitos adventistas de zelo contra os prazeres terrenos e indicando um comportamento hedonista não somente na alimentação, mas em outros aspectos.

Uma adventista de 19 anos de idade era quem possuía característica hedonista mais marcante entre todos os entrevistados, apesar de frequentadora da igreja há 11 anos. Afirmou que a religião só influencia sua alimentação quando se trata de não comer carne de porco, além de carne de animais sufocados e sangue; no mais, ela come sempre o que mais gosta e na hora que quer. É a única, dentre os adventistas, que não tem uma visão de que cultivar hábitos saudáveis é necessário para servir adequadamente a Deus na Terra.

Nesse sentido, parece não haver uma dicotomia entre católicos e adventistas quanto aos caracteres hedônico e funcional-utilitarista, conforme preconiza a literatura revisada. O que leva a crer não haver uma guerra entre Dionísio e Apolo (Albornoz, 2006), pois católicos e adventistas mostraram um equilíbrio entre os dois extremos.

Diferentemente da argumentação de Weber (1905 / 1987), há um século, e, mais recentemente, de Poulain (2004), que consideraram os protestantes funcionais-utilitaristas e católicos hedonistas, os resultados da pesquisa mostraram não haver essa dicotomia, em que o primeiro grupo está vinculado a Dioniso e o segundo a Apolo, mas, de fato, os dois grupos constituem faces da mesma moeda, ou seja, tanto católicos quanto protestantes são hedonistas e utilitaristas.

Nesse sentido, a união de Dioniso e Apolo é símbolo de uma posição dialética e sintética ante o conflito entre os ideais de realização do impulso e da razão; entre as normas inspiradas na afirmação da vitalidade e as que perseguem o equilíbrio e a harmonia, apoiadas na capacidade reflexiva e lógica, bem como no auto-domínio do homem sobre o que nele urde de primitivo e animal (Albornoz, 2006).

Vale ressaltar dois pontos. Primeiro, Max (1905 / 1987), quando argumentou que os protestantes são pragmáticos, estudou a sociedade protestante da Alemanha naquele momento histórico (final do Século 19 e início do Século 20). Segundo, Poulain (2004), que discute a caractrística hedônica dos católicos, estudou a sociedade francesa. O certo é que a presente pesquisa mostra que vivemos em outro momento histórico, diferente daquele discutido por Weber, e em outro contexto cultural, diverso daquele descrito por Poulain. O Brasil é um país novo, que teve a influência do sincretismo religioso 4 (Moscoso, 2008; Segato, 1997), provavelmente criando novas formas de experiências. Ao lado disso, as características do momento atual incluem grandes transformações econômicas, culturais, políticas, sociais, estéticas, entre outras.

Atualmente, em nossa sociedade, a relação entre alimentação e nutrição – que tem criado fenômenos como os chamados “alimentos funcionais” – cria tabus, fazendo com que certos alimentos ricos em açúcar e gordura, por exemplo, sejam, cada vez mais, demonizados em nossa cultura, ditando as regras e os valores em relação à comida (Cantarino, 2005).

Isso mostra que as práticas de alimentação não são estáticas, ou seja, sofrem mobilidade de acordo com o momento histórico e cultural. Como argumenta Gonçalves (2001), o ser humano é um ser histórico-cultural, considerando a historicidade de suas experiências, bem como das idéias produzidas como expressão mediada dessas experiências. A experiência humana é toda atividade realizada socialmente pelos homens, como maneira de atender às suas necessidades, produzindo, dessa forma, sua própria existência.

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4. Sincretismo religioso refere-se à fusão de duas ou mais crenças religiosas, surgido entre os séculos XVI e XIX. Esta mistura de doutrinas religiosas teve início quando os escravos africanos, trazidos ao Brasil pelos portugueses, foram proibidos de praticar os rituais do candomblé em benefício do catolicismo (MOSCOSO, 2008).

Vol. 30 (4) 2009
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