Espacios. Vol. 33 (9) 2012. Pág. 7 |
Trajetórias Tecnológicas do Etanol: do Proálcool à AlcoolquímicaEthanol Technological Trajectories: Proálcool the ethanol chemistryNilson Maciel de Paul 1, Marcos Paulo Fuck 2 e Rafael Barreto Dalcin 3 Recibido: 17-01-2012 - Aprobado: 05-06-2012 |
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RESUMO: |
ABSTRACT: |
IntroduçãoAs metas de industrialização acelerada estabelecidas pelo governo brasileiro na década 1950, com destaque para a indústria automobilística, tornaram o Brasil cada vez mais dependente do petróleo importado. A partir da década de 1970, o aumento do preço do petróleo, com forte impacto na balança comercial brasileira, destacou a necessidade de se buscar combustíveis alternativos aos derivados de petróleo. O Programa Nacional do Álcool, mais conhecido como Proálcool, criado em 1975, teve como objetivo estimular a produção do álcool, visando às necessidades do mercado interno e de uma política de combustíveis automotivos. O segundo choque do petróleo ocorrido em 1979-80 triplicou o preço do produto fazendo com que em 1980 sua importação representasse quase 50% da pauta de importação brasileira. Diante desse quadro, a indústria brasileira, lastreada num forte e amplo setor agrícola, passa a desenvolver em maior intensidade um combustível de origem vegetal alternativo aos combustíveis derivados do petróleo. De aditivo à gasolina o álcool passa a ser uma opção economicamente atraente e ambientalmente interessante por ser uma alternativa energética renovável que contribui com a redução no chamado “efeito estufa”. Esse processo acabou por articular diferentes segmentos da economia brasileira, desde a base agrícola, a produção de combustíveis, a indústria metal mecânica, a indústria automobilística, e finalmente a indústria química. Diante desse cenário, a discussão em torno do álcool combustível ganhou um significado que extrapola os limites da agroindústria e passou a sinalizar para a formação de uma nova matriz energética e, por conseguinte, um novo conjunto de possibilidades tecnológicas. Isso porque o Proálcool não introduziu apenas um produto novo, mas criou um novo mercado, um novo ambiente empresarial e um conjunto de novas técnicas de produção. Com a introdução do álcool como fonte alternativa ao petróleo foram desenvolvidos novos motores adaptados ao novo combustível, as usinas que até então produziram somente açúcar se remodelaram para produzir também álcool, novas usinas foram criadas apenas para produção do álcool e, com o consumo crescente, novas variedades mais produtivas de cana-de-açúcar foram desenvolvidas. Além de competir com a gasolina “no tanque” dos automóveis, o álcool também se mostra como opção de origem vegetal para substituir produtos elaborados a partir de derivados de petróleo. Trajetórias tecnológicas e o processo de inovação na agriculturaO estudo do processo de inovação tecnológica envolve diversos aspectos. Pelo viés da análise econômica, as contribuições de Joseph Schumpeter, que datam das primeiras décadas do século passado, se destacam pela atenção dada à importância das inovações para o desenvolvimento econômico. Mais recentemente esse enfoque foi herdado pelos autores neo-schumpeterianos ou evolucionistas interpretando as mudanças econômicas a partir de analogias com a evolução biológica das espécies. Nessa perspectiva, as possíveis alternativas tecnológicas e seus desenvolvimentos futuros estão no centro da análise, identificando seus determinantes e as novas direções em que se dá a inovação. A tecnologia é entendida como um conjunto prático e teórico de parcelas do conhecimento, que envolve know-how, métodos, procedimentos, experiências de sucessos e insucessos, além da infra-estrutura física referente aos equipamentos (Dosi, 2006). Uma parte desincorporada da tecnologia compõe-se de expertise específica, proveniente tanto de soluções tecnológicas do passado como do conhecimento e das realizações do estado da arte. Com essa visão ampla de tecnologia, G. Dosi define paradigma tecnológico (em analogia ao conceito de paradigma científico desenvolvido por Thomas Kuhn) como um modelo e um padrão de seleção de problemas tecnológicos selecionados, baseados em princípios selecionados, derivados das ciências naturais, e em tecnologias materiais selecionadas (grifos do próprio Dosi). O paradigma tecnológico inclui uma série de escolhas (trade-offs) técnicas e econômicas feitas pelos agentes econômicos em situações determinadas. Essas escolhas, ao estarem contidas num determinado arcabouço técnico-produtivo, conformam as trajetórias tecnológicas, que são a direção do avanço no interior de cada paradigma tecnológico ou o padrão de solução normal de problemas em um paradigma tecnológico. Ainda segundo o autor, o paradigma tecnológico incorpora fortes prescrições sobre as direções da mudança técnica a perseguir e a negligenciar, o que implica em capacidade de exclusão em relação a outras alternativas inicialmente possíveis. Nessa avaliação, “uma trajetória tecnológica pode ser representada pelo movimento dos balanços multidimensionais entre as variáveis tecnológicas definidas como relevantes pelo paradigma” (Dosi, 2006, p.45), sendo o progresso definido como o aperfeiçoamento desses balanços. Dentre as características dessas trajetórias, destacam-se: a) podem ser mais genéricas ou mais circunscritas; b) geralmente apresentam complementaridades entre diversas formas de conhecimento, experiência, habilidades etc., implicando que o desenvolvimento de uma determinada tecnologia pode estimular ou impedir desenvolvimento em outras; c) a fronteira tecnológica pode ser definida como o mais alto nível alcançado por uma trajetória tendo em vista suas dimensões tecnológicas e econômicas relevantes; d) o avanço de uma trajetória é parcialmente dependente de características cumulativas, o que significa que a probabilidade de futuros avanços também se relaciona com a posição que uma empresa ou país já ocupam vis-à-vis a fronteira tecnológica existente; e) quando uma trajetória é muito “poderosa” (do ponto de vista técnico e econômico) pode haver dificuldade em mudar para uma trajetória alternativa; e f) é questionável a idéia de se avaliar a priori a superioridade de uma trajetória sobre outras possíveis, o que ressalta a natureza incerta da atividade de pesquisa. Freeman & Perez (1988) utilizam a expressão "paradigma tecnoeconômico", ao invés de "paradigma tecnológico", porque consideram que a análise do processo competitivo deve incluir outros elementos além do progresso técnico. Os autores apresentam uma taxonomia das mudanças técnicas sendo: inovações incrementais, que geralmente surgem a partir de invenções e aperfeiçoamentos realizados por engenheiros ou por outros profissionais diretamente ligados ao processo produtivo e/ou por sugestões dos usuários; inovações radicais, que são eventos descontínuos, geralmente produto de atividades deliberadas de P&D em empresas, universidades ou instituições públicas de pesquisa; mudanças de sistemas tecnológicos, que dizem respeito a mudanças de longo alcance na economia e geralmente incluem numerosas inovações radicais e incrementais de produtos e processos (“constelações de inovações”) 4; e mudança de paradigma tecnoeconômico, as quais são profundas o suficiente para afetar o comportamento de toda a economia. Segundo a interpretação dos autores, no caso dos paradigmas tecnoeconômicos, “as mudanças envolvidas vão além de tecnologias específicas de produtos e processos e afetam a estrutura de custos e as condições de produção e distribuição do sistema” (p.47). O conceito é alinhado à idéia schumpeteriana de ciclos de crescimento e de “ondas de destruição criadora”, ao longo dos quais as novas tecnologias nem sempre são bem acolhidas pelas estruturas institucionais vigentes, provocando um processo de reestruturação institucional de modo a dar suporte ao novo paradigma. Nessa transição entre os paradigmas ocorre uma forte interação entre o processo de mudanças tecnológicas, organizacionais e institucionais, o que afeta a economia como um todo e dá uma nova dinâmica à organização da sociedade. Esse processo de mudanças tecnológicas e institucionais é baseado em um conjunto de instituições de suporte, as quais são “construídas” ao longo dos períodos de transformações. Por esse viés, a complexa rede de inter-relações e de cooperação entre os agentes que contribuem para as inovações – pesquisadores, engenheiros, fornecedores, produtores, usuários e instituições – tem sido chamada pela literatura evolucionista de Sistemas de Inovação (SI), que podem ser analisados em âmbito nacional, regional ou setorial. Em outras palavras, o SI diz respeito ao conjunto de instituições públicas e privadas que contribuem através da execução, apoio, fomento e difusão de novas tecnologias, tanto em nível macro quanto microeconômico. Vale destacar também o papel das agências de governo, das políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação, das instituições de ensino, treinamento e pesquisa, entre outras, para a dinâmica do processo de inovação (Sbicca, Pelaez, 2006). Um aspecto de grande relevância na análise dos paradigmas tecnológicos diz respeito à difusão de inovações consolidadas. Segundo Furtado (2006), os autores neo-schumpeterianos dão maior atenção às inovações incrementais, as quais são responsáveis pelo dinamismo econômico, uma vez que sua difusão gera novas inovações incrementais, a partir de inovações radicais. Após a escolha de uma nova tecnologia, esta passa por um processo de implantação, operação e uma fase de aperfeiçoamento para tornar a tecnologia competitiva. Paralelamente, as mudanças sociais, organizacionais e institucionais são de extrema importância para que o processo de difusão ocorra. Portanto “a difusão pode ser entendida como a adoção de tecnologia gerada externamente, ou de inovações engendradas pela empresa, a qual dá origem a um processo contínuo de mudanças que permite à empresa dominar a tecnologia.” (Furtado, 2006, p. 187). Conforme Dosi (2006), o processo de difusão tecnológica, a alteração no preço e na rentabilidade, e a demanda pelos insumos utilizados, influenciam a dinâmica de cada setor. Assim, uma inovação importante provoca várias alterações e melhoramentos incrementais após sua incorporação, provocando um aumento no número de usuários e na rentabilidade. Associado a isso, alterações na demanda por insumos são previsíveis. Assim, o processo de expansão das “empresas inovadoras” e das empresas que a imitam, está associado à inovação e conseqüentemente ao processo de aperfeiçoamento posterior, de forma que as relações entre produtores e usuários acabam estimulando inovações incrementais de produto ou de processo. Mesmo que potencialmente capazes de reduzir custos de produção, algumas inovações podem não ser adotadas, devido à expectativa dos agentes e ao fato de que, dada a velocidade do processo de inovação, podem se tornar obsoletas em pouco tempo. Portanto, no estágio inicial uma inovação é geralmente imperfeita e na maioria das vezes requer a solução de problemas que podem inviabilizar sua adoção naquele momento. (Rosenberg, 2006) Além disso, a inovação é um “processo de aprendizagem”, e têm como foco principal não as inovações radicais de Schumpeter, mas os pequenos aperfeiçoamentos, capazes de determinar os incrementos sucessivos a partir da inovação principal. O aprendizado, pela prática, ocorre depois que um produto é projetado, depois do processo de aprendizagem inicial e das fases de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Quando os novos produtos passam a ser usados tem-se o processo de aprendizagem pelo uso, pois o desempenho de um produto no mercado não pode ser observado antes de um excessivo tempo de uso. Esse processo resulta no aperfeiçoamento do projeto inicial a partir de um fluxo de pequenos aperfeiçoamentos incorporados a novos equipamentos. A constante introdução de inovações, radicais e incrementais, ocorre em diversos segmentos da economia, o que leva muitas vezes a mudanças que vão muito além dos mercados diretamente afetados por elas. A agricultura, tal como a conhecemos hoje, é fruto de um longo período de evolução – e de co-evolução – de tecnologias e instituições, de inovações radicais e incrementais, cujas transformações mais significativas ocorreram no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Ao longo desse período um conjunto de paradigmas e trajetórias com distintas origens e caminhos se consolidou, mesmo que não integrando a formação de um todo harmônico. O padrão tecnológico assim estruturado se manifesta através da complexidade do processo produtivo na agricultura, no qual se destacam heterogeneidades e complementaridades entre diversos insumos e técnicas, da crescente aproximação entre a agricultura e o conjunto da economia, do aumento de produtividade, e de seu caráter histórico e cumulativo por mais de um século (Salles-Filho, 1993). Possas et al. (1996) indicam a necessidade de observar detalhadamente os aspectos que moldam as trajetórias tecnológicas da agricultura e sugerem que: i) não há uma trajetória tecnológica geral para a agricultura, que se caracterize pela homogeneidade tecnológica e competitiva. Pelo contrário, existem diferenças significativas entre, por exemplo, as inovações químicas que englobam pesticidas e fertilizantes, duas indústrias radicalmente diferentes em suas atividades de pesquisa; a indústria de sementes também não é homogênea, como em relação à produção de sementes híbridas e variedades, nas quais as condições de apropriabilidade são bastante distintas etc.; ii) o conceito de trajetória tecnológica não pode ser tomado como um conceito setorial amplo, mas sim ligado a determinadas tendências da dinâmica competitiva dos mercados; e iii) as trajetórias das indústrias relacionadas à agricultura devem ser consideradas nas suas inter-relações com os mercados agrícolas. Para Buainain et al. (2002) as trajetórias tecnológicas da agricultura são entendidas “como a articulação no tempo entre inovações geradas por diversas fontes de inovação e as diferentes formas de organização da produção agrícola” (p.64). Essa articulação envolve os atributos do processo inovativo (as oportunidades tecnológicas, os mecanismos de apropriabilidade e a busca de cumulatividade) que interagem com os processos seletivos que operam na economia, que compreendem tanto os efeitos de destruição criadora e o efeito de afastamento de certos agentes de determinadas opções tecnológicas. Ainda segundo os autores, o resultado dessa interação é a emergência de padrões de inovação relativamente estáveis e que vão se desdobrando segundo certos critérios. Durante o período de modernização da agricultura brasileira, iniciado nos anos de 1970, esses critérios foram o aumento da produtividade da terra e do trabalho. Como se apresentará na seqüência deste estudo, a formação de uma matriz enérgica alternativa à utilização da gasolina foi o resultado do esforço e das estratégias de diversos atores sociais envolvidos, destacando-se a complementaridade entre inovações radicais e incrementais no processo de difusão, bem como a formação de um conjunto de novas possibilidades que podem favorecer a utilização do álcool como alternativa ao petróleo na indústria química. A constituição de um sistema tecnológico alternativo de energia requer forte atenção a diversos aspectos, como o marco regulatório, os novos mercados para as novas fontes de energia, as novas empresas, a legitimidade frente à opinião pública, entre outros aspectos (Furtado et. al., 2011). A evolução do Proálcool: de uma política energética aos desafios tecnológicos da indústria automobilísticaEmbora a possibilidade da utilização do álcool como combustível já fosse conhecida há mais de um século em vários países, os baixos preços internacionais do petróleo e a relativa abundância de oferta inviabilizavam a opção pelo combustível alternativo. Com o primeiro choque do petróleo, inicia-se uma busca por fontes alternativas de energia, com destaque para as opções decorrentes da cana-de-açúcar. Antes disso, porém, observava-se a evolução de importantes elementos que deram suporte às inovações no setor sucroalcooleiro. Uma interessante síntese dos principais elementos relacionados à evolução histórica do chamado Sistema de Produção e Inovação Sucroalcooleiro é apresentada por Dunham et. al. (2011). Segundo os autores, no período de 1875 a 1975, seis elementos importantes influenciaram a estruturação do Sistema, sendo eles: 1) o processo de modernização da agroindústria sucroalcooleira iniciado na década de 1870, com destaque para a criação de uma nova categoria de atores – os fornecedores de cana-de-açúcar; 2) a superação da crise do mosaico da cana, fruto dos esforços de pesquisa agrícola empreendidos em parceria entre instituições públicas de pesquisa e empresas privadas; 3) a formação do mercado de álcool combustível, que teve no Decreto 19.717/31 um importante elemento para a consolidação do álcool anidro como combustível aditivo à gasolina; 4) o desenvolvimento de variedades de cana-de-açúcar após a crise do mosaico, cujo objetivo era aumentar a produtividade agroindustrial por meio de novas variedades com maior conteúdo de sacarose e de maior resistência a pragas e doenças; 5) a expansão produtiva da agroindústria sucroalcooleira em São Paulo, o que levou ao declínio da participação e competitividade do açúcar oriundo das demais regiões produtoras e ao fato das Usinas de São Paulo alinharem o aumento quantitativo da produção com eficiência produtiva; e 6) o relacionamento da agroindústria sucroalcooleira com a indústria de equipamentos, o que foi “motivado pela oportunidade da atender à demanda por equipamentos, gerada pelo crescimento agroindustrial do setor e reforçada pela política de substituição de importações” (pg. 64). Em outubro de 1975 é anunciado o Proálcool definindo as medidas, as metas e os objetivos da nova política energética. Em sua fase inicial fora baseado na produção de álcool anidro para ser incorporado à gasolina, mas, segundo o Ministério da Indústria e Comércio (MIC) ao qual o programa estava subordinado, a adição de 15% de álcool anidro à gasolina não estava surtindo os efeitos esperados. Era preciso lançar o carro movido exclusivamente a álcool e insistir numa estratégia de marketing para ampliar sua aceitação no mercado. Estudos feitos pelo MIC e pela Comissão Executiva Nacional do Álcool (Cenal) chegaram à conclusão de que a produção de carros movidos a álcool já era possível mesmo levando em conta a necessidade de uma rápida adaptação por parte da indústria automobilística na produção de motores a álcool (Netto, 2007). Em setembro de 1979 é assinado um protocolo entre o Governo e a Indústria Automotiva, segundo o qual todas as empresas do ramo colocariam em suas linhas de produção o motor movido a álcool. Este documento também estipulava obrigações ao governo tais como, a produção de 10 bilhões de litros de álcool e disponibilização deste em todos os estados a fim de suprir a demanda de forma satisfatória (Netto, 2007). Então, em 1979, a indústria automobilista produz o primeiro carro a álcool, o Fiat 147. Em 1982 inicia-se a produção em larga escala de carros movidos a álcool, sendo produzidos 3.814 veículos em janeiro, e chegando a 45.522 veículos em dezembro, totalizando 232.575 em todo ano (Lima, Marcondes, 2002). A constituição de um novo mercado para veículos movidos a etanol foi possível graças aos incentivos fiscais à produção dos carros “a álcool” e pelo controle de preços para tornar o etanol mais econômico do que a gasolina. O governo induziu a Empresa Petróleo Brasileiro S/A (Petrobras) e seus fornecedores a criar os sistemas necessários para o transporte, armazenamento e distribuição de etanol hidratado para ser usado em veículos leves (Furtado et. al., 2011). Apesar desse aumento da produção, as primeiras séries lançadas no mercado, apresentavam sérios problemas, em geral relacionados à agressividade do álcool aos motores e à lentidão na partida, os quais acabaram comprometendo as estimativas de vendas pela indústria automotiva. Com isso, a Copersucar (Cooperativa de Produtores de Cana-de-açúcar, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo), maior grupo de produtores de açúcar e álcool do país, procurou promover o carro a álcool para preservar os investimentos já realizados. Por sua vez, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), estimulou a busca de solução para os problemas dos primeiros carros a álcool, resultando num aumento das vendas de carros a álcool de 4.528 no primeiro trimestre de 1982 para 50.277 unidades no segundo trimestre de 1983, elevando a participação do carro a álcool nas vendas de 9,4% para 79,7% (Netto, 2007). A efetiva disseminação do motor a álcool se tornou possível a partir de um processo de adaptação tecnológica que possibilitou a superação de vários problemas técnicos. Assim, foi desenvolvido um carburador exclusivo para uso do álcool, pois os motores movidos a gasolina adaptados ao uso do álcool apresentavam problemas de corrosão e na combustão do álcool, em parte devido a uma distribuição desigual. Tal inovação substituiu a parte metálica do carburador por materiais de plástico não possuindo canais nem roscas, evitando assim vazamentos. Esta inovação tecnológica solucionou um dos principais problemas enfrentados pela indústria automobilística no início do desenvolvimento do carro a álcool. Como o governo determinou a mistura do álcool na gasolina foi desenvolvido também um dispositivo que permitiu maior rendimento no uso combinado da gasolina e do álcool Entretanto, a inovação mecânica de maior impacto no mercado automobilístico foi o desenvolvimento dos motores flex fuel, capazes de serem movidos a gasolina, a álcool ou a mistura em qualquer proporção dos dois combustíveis. Adicionalmente, empresas fornecedoras de motores bicombustíveis desenvolveram um sistema que permite controlar a temperatura do motor ao longo do processo de combustão, aquecendo o álcool, com isso tornando desnecessário o tanque de gasolina para a partida. Esses fatores favoreceram um grande aumento no consumo de álcool. Conforme Bennertz (2009), houve mudança no conteúdo técnico e no contexto social após a consolidação do álcool combustível. Comportamentos foram modificados, instituições criadas, redes de distribuição de álcool incentivadas, as taxas de compreensão de motores modificadas, as pesquisas geraram resultados que vieram a estabilizar as controvérsias sobre a viabilidade técnica do álcool combustível, entre outros aspectos. E mais, o país “foi povoado com um novo combustível, um novo motor e um novo tipo de consumidor, ávido, curioso, disposto a completar o tanque do seu carro com o álcool combustível” (pg. 94). A organização de um Sistema de Inovação e a emergência da alcoolquímicaA introdução massiva do etanol na matriz energética brasileira em 1975 se deu com a criação do Proálcool, frente à crise internacional do petróleo e queda do preço do açúcar no mercado internacional. Conforme Furtado et. al. (2011), o sucesso brasileiro na produção de etanol a partir da cana-de-açúcar não pode ser entendido com base unicamente em uma vantagem comparativa natural, mas como resultado de esforços que culminaram em uma trajetória positiva de aprendizagem tecnológica, fortemente baseada em inovações incrementais. Conforme destaca o autor, o turning-point do processo se deu a partir do Proálcool, por possibilitar uma trajetória virtuosa de inovação/difusão que levou ao aumento de produtividade e redução dos custos de produção nas etapas agrícola e industrial. Neste sentido, vale destacar o sistema setorial de inovação relacionado à cana-de-açúcar no Brasil é formado, principalmente, pelos seguintes atores (Furtado et. al., 2011):
Com base nessa estrutura, o país se tornou referência internacional nas pesquisas envolvendo bioenergia. Além de seu uso como combustível, o etanol vem se transformando em matéria-prima pela indústria de transformação, como “etanol grau químico”, a partir da conversão do álcool etílico para a produção de diferentes produtos químicos. Mesmo que, em nível mundial, 90% das sínteses de moléculas orgânicas sejam ainda à base de petróleo, a alcoolquímica poderá exercer o mesmo papel como fonte de matéria-prima para a indústria química através do etanol. Neste novo panorama tornam-se relevantes as novas tecnologias baseadas na exploração da biomassa e a emergência das biorrefinarias, condutoras de um novo conjunto de possibilidades tecnológicas baseado na alcoolquímica em substituição à petroquímica. Este processo poderá resultar em diferentes trajetórias tecnológicas relacionadas à geração de energia, o uso de combustíveis e indústria química. Nesse sentido, o etanol destaca-se como combustível de segunda geração, a partir da biomassa celulósica, para a qual, apesar dos custos elevados, já foram desenvolvidas as tecnologias de hidrólise ácida, utilizando o ácido sulfúrico para quebra das moléculas de celulose e extraindo destas as moléculas de açúcar, e a hidrólise enzimática que utiliza enzimas para este processo (Bastos, 2007). No Brasil, a Petrobras deu início a uma nova etapa na produção de biocombustíveis, em parceria com a empresa Albrecht, desenvolvendo o processo de hidrólise enzimática, para o qual tem sido fundamental parceria com universidades brasileiras. Apesar de qualquer rejeito vegetal poder ser utilizado para fabricação do bioetanol, a planta está ajustada para produção, utilizando o bagaço da cana-de-açúcar como matéria prima, sendo capaz de extrair 220 litros de etanol por tonelada de bagaço, enquanto o processo tradicional produz em média 80 litros por tonelada. Outra empresa brasileira engajada neste processo é a Dedini, que desenvolveu uma tecnologia denominada DHR (Dedini Hidrólise Rápida). Segundo esse processo, um aumento de 20% da produção de cana limpa poderá resultar num aumento da produção de etanol de 6.400 litros por hectare através do processo convencional para 12.050 litros utilizando a tecnologia DHR (Inovação Unicamp, 2006). Outra trajetória tecnológica pode evoluir na indústria química a partir do recurso de fontes alternativas de matéria-prima. Grandes empresas do setor petroquímico como Dow Química, Braskem e Oxiteno, que utilizam a nafta e outros derivados do petróleo como fonte de matéria-prima para fabricação de resinas plásticas, já possuem em sua linha de frente, pesquisas e investimentos para produção de plástico utilizando fontes renováveis. A Braskem vem desenvolvendo polietileno baseado no álcool de cana-de-açúcar, denominado “polímero verde”. Em sua fabricação são extraídos 99% do carbono contido no álcool e transformado em etileno, sua matéria prima essencial, restando como subproduto a água que pode ser reaproveitada. Serão produzidas resinas de alta e baixa densidade que possuem aplicações rígidas e flexíveis e poderão ser utilizadas por vários setores como o automotivo, embalagens e artigos de higiene pessoal (Ereno, 2007). Igualmente, a Dow Química em parceria com a empresa brasileira Crystalsev pretende produzir polietileno a partir do etanol com a criação de um pólo alcoolquímico. Tal parceria vai integrar a etapa do plantio da cana, sua fabricação e comercialização. Por sua vez, a empresa Oxiteno possui projeto de uma planta em escala industrial para fabricação de produtos “via verde”, atualmente obtidos através da petroquímica. O projeto será conduzido através da tecnologia de hidrólise ácida ou enzimática, para a fabricação de eteno, utilizado como matéria-prima para diversos produtos. (Inovação Unicamp, 2006). Enfim, a análise da emergência da alcoolquímica guarda relação com o que a literatura econômica chama de um novo conjunto de possibilidades tecnológicas, de um novo paradigma tecnológico que possibilita o desenvolvimento de algumas trajetórias tecnológicas. Conforme DOSI (2006) o paradigma tecnológico indica a direção em que as mudanças técnicas devem ser perseguidas e deve-se levar em conta também o papel do estado na determinação das trajetórias tecnológicas através de suas políticas públicas. Essas mudanças técnicas induzem outras mudanças nos vários ramos da indústria, principalmente naqueles setores que utilizam produtos de outros setores como insumo. Segundo a interpretação evolucionista, quando as inovações incrementais não produzem mais um efeito significativo na produtividade e as inovações dos produtos chegam a um ponto de esgotamento, aparecem na economia condições para o surgimento de um novo paradigma. Nesse contexto, segundo Bastos (2007), surgem as biorrefinarias, que poderão se transformar em uma indústria chave no século XXI, utilizando os biocombustíveis de segunda geração como matéria-prima para produção de vários produtos químicos até então produzidos com base no petróleo, introduzindo um novo paradigma industrial. Esse processo já está em formação na medida em que algumas empresas inovadoras estão investindo em P&D, para o desenvolvimento de combustíveis de segunda geração, os quais utilizam o bagaço da cana para produção de álcool. Empresas como Petrobras e Dedini Indústria de Base já possuem plantas piloto para produção de álcool através do bagaço da cana, mas esse processo requer ainda o domínio da tecnologia, o que torna sua difusão mais lenta. De qualquer forma, o conjunto de atores envolvidos na transformação do álcool, as políticas públicas construindo vantagens competitivas num setor emergente, o interesse de empresas inovadoras consubstanciadas em trajetórias tecnológicas, resultaram na formação de um paradigma tecnológico cujo desdobramento poderá se dar através da alcoolquímica. ConclusãoA criação do Proálcool, segundo o enfoque neoschumpeteriano, representou possibilidades de um novo paradigma na economia brasileira devido à introdução de um novo produto e uma complexa rede de eventos a ele associados. Apesar de o programa ter suas bases fundamentadas na iniciativa do governo através de uma política pública, sua execução foi realizada em grande medida pelas empresas privadas. No entanto, mais do que a introdução de novo produto, o Proálcool representa a criação de um novo mercado, um novo ambiente empresarial, e um salto no desenvolvimento tecnológico. Portanto, um novo conjunto de inovações abrangendo diferentes segmentos produtivos é formado e diversas trajetórias tecnológicas são traçadas. Embora as constantes inovações incrementais produzidas no interior de um paradigma sejam de fundamental importância para o desenvolvimento da tecnologia, aquelas chegam a um processo de maturidade dando condições para que um novo paradigma seja desenvolvido. No cenário econômico atual de escassez de petróleo, de incertezas derivadas de preços oscilantes, no contexto de uma crise financeira global, surgem as biorrefinarias, como potenciais condutores de um novo paradigma tecnológico. Mais do que isso, essa nova matéria prima será a base para o desenvolvimento de novos produtos químicos, até então derivados exclusivamente do petróleo. Referências BibliográficasBastos, V.D. (2007); Etanol, alcoolquímica e biorrefinarias. BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 25, p 5-38, 2007. Disponível em: <http://www.bndes.gov.br/conhecimento /bnset/set2501.pdf>. 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1 Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPPP) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil, e-mail: nilson@ufper.br |