Espacios. Vol. 25 (3) 2004

C&T no nível local: uma proposta de esquerda

C&T a nivel local: Una propuesta de izquierda
S&T at local level: a left proposal

Renato Dagnino


7. Razões do fracasso dos Parques e Pólos Tecnológicos

Algumas das razões que explicam o pouco sucesso dessas iniciativas são também as que explicam a pouca relevância para a economia brasileira dos segmentos industriais baseados no que é conhecido como alta tecnologia.

Uma classificação internacionalmente aceita aponta como de “alta tecnologia” as indústrias que apresentam gastos de P&D superiores a 4% do faturamento, de “média” as gastam entre 1 e 4% em P&D, e de “baixa” aquelas em que o gasto em P&D é menor do que 1% do faturamento.

Preocupados com a baixa eficácia das políticas tecnológicas e industriais européias que, baseadas na idéia de senso comum de que são as indústrias de alta tecnologia as que promovem desenvolvimento econômico, pesquisadores europeus mostraram que 97% de toda atividade industrial daquele continente está baseada em baixa e média tecnologia. E que mesmo nos EUA e Japão a participação da alta tecnologia não ultrapassa 16%. E, ainda, que como o setor manufatureiro representa uma parcela cada vez menor do PIB dessas economias (hoje ela é menos de 25%), as indústrias de alta tecnologia responderiam apenas por 0.75% e 4% do total da riqueza produzida, respectivamente, na Europa e nos EUA e Japão.

Segundo esses pesquisadores, muitos dos segmentos industriais de baixa e média tecnologia que, segundo aquele senso comum, seriam transferidos para a periferia, sofreram um processo de reorganização que os tornou muito competitivos e exitosos no que toca à penetração no mercado mundial. E que, apesar do rápido desenvolvimento das TICs, muito do crescimento industrial recente da Europa decorre do avanço de segmentos não intensivos em P&D mas que geram uma quantidade significativa de produtos novos ou tecnologicamente modificados a partir, inclusive, de inovações desenvolvidas em outras indústrias localizadas dentro e fora da região. Essas indústrias parecem possuir formas de organização industrial e geração de conhecimento e relações com a infra-estrutura de C&T muito particulares, que não se enquadram nos modelos tradicionalmente empregados para elaborar a política tecnológica e industrial. A de mobiliário é um exemplo de indústria européia que está crescendo mediante utilização intensiva de conhecimento, de habilidades em design de alto nível, etc para a inovação.

Não existe para o Brasil pesquisa semelhante. Mas segundo dados obtidos através da metodologia da Pintec/IBGE, dos 29 setores industriais, nenhum gasta mais do que 4% de seu faturamento em P&D para poder ser considerado de alta tecnologia. Somente 6 setores poderiam ser considerados de média tecnologia (1 a 4% do faturamento aplicado em P&D): Máquinas e Equipamentos (1,2%), Equipamentos de Informática (1,3%), Equipamentos de Precisão, de Comunicações, Máquinas e aparelhos elétricos (todos com 1,8%) e Outros Equipamentos de Transporte (2,7%).

O fato dos demais 23 setores de baixa tecnologia responderem por quase de 85% da produção industrial brasileira estaria mostrando, por um lado, a excessiva importância que os setores de alta tecnologia possuem na determinação dos rumos da política tecnológica nacional. E a escassa probabilidade de que esta possa de fato promover a capacitação do tecido industrial local - mais ainda do que o europeu, de baixa intensidade tecnológica - e o crescimento econômico. Por outro lado, sugere como uma política que, ao invés de basear-se em Parques e Pólos Tecnológicos com um viés de alta tecnologia e na atração de empresas estrangeiras, promovesse a capacitação da micro e pequena empresa nacional situada em setores de baixa intensidade tecnológica, poderia alcançar resultados significativos.

Uma outra razão que explica o pouco sucesso dos Parques e Pólos Tecnológicos é que em geral somente as grandes empresas é que tem condições de investir em P&D. E que, destas apenas as nacionais é que efetivamente realizam P&D no País. O fato de que entre as 500 maiores empresas, as de propriedade estrangeira são atualmente responsáveis por 46% da produção total (quando, em 1985 eram por 29%) e que se concentram justamente nos setores de maior intensidade tecnológica (92% do segmentos eletro-eletrônico, 85% do automobilístico, 78% do de computação e 74% do de telecomunicações), ajuda a entender porque a PCT brasileira tem que mudar e porque ela deve mudar a partir da instância municipal.

Finalmente, por que investir esforços na atração de uma das pouquíssimas empresas multinacionais que contrariam a tendência mundial de localizarem seus centros de P&D nos países sede ou em outros países avançados para um Pólo brasileiro, quando existe para eles um uso alternativo muito mais rentável para o País.

8. Exemplo de uma proposta de esquerda: o Sistema de Inovação Social

Este Sistema procura responder ao desafio que hoje se coloca para um grande número de prefeituras, em que ganharam as eleições forças políticas interessadas em promover um estilo de desenvolvimento social e ambientalmente sustentável e que, para tanto, percebem a necessidade da inovação social.

A seguir se apresenta as características do Sistema de Inovação Social, iniciando pelo enunciado de alguns conceitos necessários ao entendimento da proposta, passando a apresentar alternativas para a visualização de sua forma de operação e indicar os recursos materiais e humanos que demanda.

Alguns conceitos próprios ao Sistema de Inovação Social

O conceito de inovação, entendido como o conjunto de atividades que pode englobar desde a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico até introdução de novos métodos de gestão da força de trabalho, e que tem como objetivo a disponibilização por uma unidade produtiva de um novo bem ou serviço para a sociedade é hoje recorrente no meio acadêmico e cada vez mais presente no ambiente de policy making. O conceito engloba, portanto, desde o desenvolvimento de uma máquina (hardware), até um sistema de processamento de informação (software) ou de uma tecnologia de gestão - organização ou governo - de instituições públicas e privadas (orgware).

As condições em que, no Primeiro Mundo, o conceito de inovação foi cunhado e passa a ter como objetivo primordial a competitividade dos países merecem destaque. É lá onde surge o novo paradigma tecno-econômico baseado na eletro-eletrônica, onde um estado do bem-estar garantia um nível razoável de desenvolvimento social, onde o término da Guerra Fria acirra a concorrência intercapitalista e onde o crescimento dependia crescentemente das as oportunidades de exportação e, portanto da competitividade (sempre entendida em relação ao exterior).

O conceito de Sistema Nacional de Inovação foi cunhado nestes países como um modelo descritivo de um arranjo societal típico do capitalismo avançado. Arranjo em que uma teia de atores densa e completa gera, no interior de um ambiente sistêmico propício proporcionado pelo Estado, sinais de relevância que levam ao estabelecimento de relações virtuosas entre pesquisa e produção, à inovação nas empresas e à competitividade do país. Posteriormente ele se transforma num modelo normativo para que estes países, ao mesmo tempo semelhantes no plano sócio-institucional e complementares no econômico, orientem seus governos e grandes empresas em busca da competitividade.

Algo parecido ocorreu, também, nos países periféricos como o Brasil, onde se tentou emular a criação de Sistemas Nacionais (e Locais) de Inovação em busca da competitividade, como se existissem aquelas condições e aquele arranjo societal. O conceito de Sistema é aqui utilizado num sentido francamente prescritivo (ou normativo). Isto é como um arranjo a ser construído mediante ações coordenadas e planejadas, de responsabilidade de um tipo particular de Estado que, sem pretender substituir e sim alavancar uma incipiente teia de atores ainda incapaz de gerar sinais de relevância fortes, promova o estabelecimento de relações virtuosas entre pesquisa e produção e a um tipo particular de inovação.

O conceito de inovação social é aqui usado para fazer referência ao conhecimento - intangível ou incorporado a pessoas ou equipamentos, tácito ou codificado - que tem por objetivo o aumento da efetividade dos processos, serviços e produtos relacionados à satisfação das necessidades sociais. Sem ser excludente em relação ao anterior, ele se refere a um distinto código de valores, estilo de desenvolvimento, “projeto nacional” e objetivos de tipo social, político, econômico e ambiental. Como o anterior, o conceito de inovação social engloba três tipo de inovação: hardware, software e orgware1.

A visualização do Sistema de Inovação Social

A concepção combinada destes três tipos de inovação, através de uma rede de atores sociais (universidades, órgãos de governo, empresas etc) em que o Estado2 desempenha um papel central direcionado a garantir à população os direitos de cidadania – educação, saúde, emprego e renda - é o que caracteriza o Sistema de Inovação Social. Adicionalmente, visa à promoção de sinergias cumulativas entre estes atores, no bojo de um processo de radicalização da democracia política e econômica; condição para assegurar níveis crescentes de participação nas decisões que afetam a maioria da população. O Sistema irá promover o desenvolvimento de inovações, no interior do aparelho de Estado, ou por outros atores (através do apoio direto ou a compra de seus resultados) de três tipos distintos (hardware, software e orgware), orientadas a três finalidades tal como representado na figura abaixo.

Figura 1

Em cada um dos três eixos se representa o grau em que cada finalidade é atendida pelas inovações que o Sistema promove. O primeiro eixo diz respeito às demandas do próprio Estado por inovações orientadas à melhoria da eficiência, eficácia e efetividade da “máquina” do Estado. O segundo diz respeito à utilização do poder de compra do Estado como vetor de inovação dos processos de produção dos bens e serviços que adquire ou contrata com organizações de natureza privada (empresas, cooperativas etc). O terceiro eixo abarca inovações passíveis de serem utilizadas por organizações de natureza privada (e preferivelmente por elas geradas) com ou sem finalidade lucrativa, que promovam formas de produção compatíveis com um estilo de desenvolvimento social e ambientalmente sustentável. Dado que uma mesma inovação pode atender a mais de uma finalidade (e é desejável que seja assim), o sólido mostrado na figura seria o conjunto de ações promovidas pelo Sistema visando promover inovações de três tipos diferentes para atender às três finalidades, também diferentes.

Uma outra forma de representação do Sistema é através de um “diamante” como o que se mostra abaixo. Nele convergem, para o vértice superior, os três demandantes do Sistema – órgãos de governo, setor produtivo e sociedade – e para o vértice inferior, as suas três finalidades – utilização do poder de compra do estado, melhoria da máquina do estado e indução de inovações coerentes com o desenvolvimento social e ambientalmente sustentável. Os tipos de inovação com os quais trabalha o Sistema – hardware, software, orgware - são mostrados na seção triangular média do diamante.

Finalmente, uma outra forma (bidimensional) de expressar as características do Sistema, que terá como idéia-chave ou como “elemento de liga” a inovação social, é a de uma matriz como a representada abaixo.

Cada célula da matriz indicaria as ações que seriam desencadeadas para promover as inovações de um dado tipo para satisfazer a uma determinada finalidade, mediante a mobilização de atores como universidades (professores e estudantes), líderes comunitários, sindicatos, empresas, cooperativas.

Forma de operação do Sistema de Inovação Social

O instrumento de visualização sugerido pela matriz permite exemplificar a forma de operação do Sistema. Na primeira linha, que diz respeito à melhoria da “máquina” do Estado, estariam situadas, desde a concepção de um dispositivo para o tratamento de esgoto (hardware), até a qualificação de funcionários e a capacitação de quadros dirigentes em técnicas de governo ou planejamento estratégico (orgware), passando pelo o desenvolvimento de sistemas que permitam a informatização de serviços prestados à população (software). Na segunda, que diz respeito à utilização do poder de compra do Estado como vetor de inovação, poderiam estar inovações como um novo tipo de alimento para merenda escolar (hardware), uma tecnologia de construção de casas populares mais intensiva em materiais locais (software e hardware), o desenvolvimento de um sistema de gestão e avaliação de custos de transporte urbano, a qualificação e retreinamento de desempregados ou sua capacitação para a criação de cooperativas de serviços (orgware). Na terceira linha, que abarca inovações utilizáveis por organizações privadas (e preferivelmente por elas geradas) compatíveis com um estilo de desenvolvimento social e ambientalmente sustentável, estariam inovações daqueles três tipos, que contribuam para a geração de emprego e renda, promovam a competitividade da pequena produção e o uso de matérias-primas abundantes localmente, diminuam danos ambientais, otimizem a utilização de recursos energéticos, promovam a capacitação ou requalificação da mão-de-obra, contribuam para a formação de redes de difusão tecnológica e de iniciativas conjuntas entre empresas etc.

O Sistema não se resume a uma estrutura administrativa ou conjunto de órgão situados em alguma secretaria de governo. Sendo a inovação social um processo que interessa e onde intervém um grande número de atores, e cujo impacto se dá de forma dispersa (em nosso caso em diferentes partes do aparelho de Estado e da sociedade), é lógico que ele seja concebido como um ente governamental de tipo horizontal. Um ente que permita que o processo de decisão acerca das ações a serem privilegiadas e seu próprio processo e local de implementação envolva várias áreas de atuação - e respectivos órgãos - de governo. Embora possa ser representado por uma matriz, o Sistema não deve ser assimilado a uma “estrutura matricial”, muito menos a uma de tipo “departamentalizada”. Ele tem como premissa cognitiva a interdisciplinaridade, como elemento organizador a visão sistêmica, como princípio finalístico o serviço à população e como vetor estruturante a inovação social.

O Sistema não se esgota nos limites da porção do aparelho do Estado à qual estará adstrita. A rede de atores com ele relacionada abrange por um lado, atores especificamente direcionados à geração de conhecimento – as Universidades e Institutos de Pesquisa do Estado – e, por outro, organizações públicas e privadas que têm como característica distintiva a de alavancar inovação. Seja no sentido de oferecer condições para a realização de atividades inovativas, seja de demandar soluções inovativas aos seus problemas. São exemplo, no setor privado (e no chamado terceiro setor), os pequenos produtores, as empresas familiares, as cooperativas e movimentos sociais e, na área pública, uma grande quantidade de órgãos relacionados ao governo (setores das prefeituras, empresas públicas, autarquias etc) que demandam significativamente da inovação para sua operação. A presença dessas organizações capazes de incorporar desde o início do processo inovativo os componentes direcionadores da “oferta” e da “demanda” de conhecimento fará com que as decisões de maior transcendência relativas à atuação do Sistema sejam tomadas de forma participativa e em conjunto com aqueles mais diretamente envolvidos no seu desempenho.

Um último comentário em relação à forma de operação do Sistema diz respeito à relação entre a metodologia proposta e os métodos de intervenção social que já compõem o arsenal de alguns partidos políticos brasileiros, em especial o Orçamento Participativo. Isto porque eles contribuem para encaminhar favoravelmente um dos problemas cruciais do processo inovativo, o que se conhece na literatura especializada como a “formação da agenda”. A definição dos temas que devem concentrar a atenção do potencial de inovação (ou usando a termo mais conhecido embora não equivalente, da capacidade material e humana existente de geração de pesquisa e de financiamento) é realizada em todo o mundo, mas principalmente em sociedades periféricas, em função de um modelo institucional que busca emular a dinâmica científica e tecnológica dos países centrais.

Contar com um mecanismo como o Orçamento Participativo implica em contrabalançar esta tendência até agora hegemônica, danado lugar à possibilidade de que o processo de “formação da agenda” passe a estar influenciado por outras diretrizes.

Recursos materiais e humanos

As características do Sistema proposto fazem com que o mesmo possa ser constituído, basicamente, a partir de recursos materiais e humanos já existentes no âmbito da Prefeitura.

Do ponto de vista estritamente financeiro, as ações referentes às três finalidade apresentam um balanço de custo-benefício que tenderá a ser positivo. As ações referentes à finalidade denominada “Poder de Compra do Estado” é claramente geradora de recursos, na medida em que poderá permitir, já no curto prazo, uma considerável economia. As referentes à finalidade “Demanda do Estado” tenderão a demandar recursos para a contratação de serviços especializados para a organização e oferecimento de cursos e programas de capacitação etc cujo retorno só será sentido na medida em que a melhoria da eficiência, eficácia e efetividade da “máquina” do Estado se concretizar. Não obstante, neste caso mas também nos demais, os encarregados da gestão do Sistema terão a responsabilidade de alavancar recursos públicos e privados adicionais aos fornecidos pela Prefeitura para a sua operação. Como exemplo mais relacionado a esta finalidade, estão os recursos que poderão ser obtidos junto ao FAT, SENAI, Fundação Euvaldo Lodi e outros fundos, instituições e Programas dedicados à formação e qualificação do trabalhador. De um modo genérico, instituições como o CNPq, Finep, Fapesp, entre tantas outras relacionados ao fomento à pesquisa científica e tecnológica, também poderão ser importantes parceiras das iniciativas promovidas no Sistema. Num plano ainda mais abrangente, haveria que citar as instituições internacionais de caráter público e privado sensíveis a projetos e iniciativas como o que se pretende implantar.

As ações referentes à finalidade denominada “Desenvolvimento Sustentável”, na medida em que se criem mecanismos como pagamento de royalties pelas organizações envolvidas, capital de risco, arrendamento de equipamento e locais de propriedade da Prefeitura, poderão também ter seu custo líquido de operação positivo.

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