ISSN 0798 1015

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Vol. 39 (Nº 09) Ano 2018 Pág. 21

O «homem playboy»: a operacionalização de uma masculinidade hegemônica na revista Playboy (Brasil) na década de 1980

The «playboy man»: the operationalization of a masculinity hegemonic in the Playboy magazine (Brazil) in the decade of 1980

Douglas Josiel VOKS 1

Recebido: 05/11/2017 • Aprovado: 01/12/2017


Conteúdo

1. Introdução

2. Metodologia

3. Resultados

4. Conclusões

Referências bibliográficas


RESUMO:

O estudo dos homens na perspectiva do gênero tem se mostrado cada vez mais importante para se perceber diversas relações conflituosas e tensas envolvendo as masculinidades e suas relações de poder, além de evidenciar o quanto o gênero é relacional. Nesse sentido, esse artigo procura explorar as representações, discursos e projetos políticos sobre a masculinidade na revista Playboy na década de 1980, observando a operacionalização de uma “nova masculinidade”. Busca-se compreender as estruturas que sustentavam essa masculinidade, suas rupturas e permanências numa perspectiva e metodologia de História do Tempo Presente.
Palavras-Chiave: Masculinidade, Revista Playboy, Brasil, Discursos

ABSTRACT:

The study of men from a gender perspective has been increasingly important in order to perceive several conflicting and tense relations involving masculinities and their power relations, as well as to show how relational the gender is. In this sense, this article seeks to explore representations and discourses about masculinity in Playboy magazine in the 1980s, observing the operationalization of a "new masculinity". It seeks to understand the structures that supported this masculinity, its ruptures and permanences in a perspective and methodology of History of Present Time.
Keywords: Masculinity, Brazil, Discourses, Playboy Magazine

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1. Introdução

Olhar para o passado e construir uma narrativa histórica é trazer à tona uma interpretação do que se elaborou, em termos de práticas e representações sociais, a respeito de um determinado período ou de um processo histórico. Tal período ou processo não está dado; o historiador é quem o faz a partir da sua operação historiográfica, buscando “representar as coisas passadas” (Paul Ricoeur, 2007, p.147). Neste sentido, para Jörn Rüsen (2001), “o passado é interpretado e se constitui em uma história que passa a ter uma função na cultura contemporânea” (p.154). Investigar as pressões sociais exercidas sobre os homens para mantê-los inseridos no que é considerado “normal” pelos discursos vigentes nas sociedades do presente, com um olhar voltado para a década de 1980, nos possibilita identificar mudanças, rupturas e, principalmente, a continuidade de diversas representações acerca da masculinidade no tempo presente. Este passado histórico se torna presente a partir da narrativa do historiador e ajuda a compreender o nosso presente (Jorn Rüsen, 2001 p.149).

O olhar sobre o passado é fundamental, pois, como Foucault (2006) nos mostrou que os sujeitos são construídos historicamente e, portando, fruto de uma constituição permanente, engendrada em relações de saber-poder que envolvem questões políticas, econômicas e sociais, da mesma forma a masculinidade faz parte dessa construção dos sujeitos, e vai ser materializada na cultura com inúmeros regimes discursivos e não discursivos, como família, escola, trabalho, sexualidade, raça/etnia, religiosidade e, nas últimas décadas, com cada vez maior peso, as mídias. De sua influência na constituição dos sujeitos e, principalmente, das masculinidades, decorre o interesse, nos últimos anos, em estudar fontes periódicas, pois nelas se encontram discursos e representações que podem produzir determinadas práticas, influenciar sujeitos e modos de ser “homem”. Esta construção, porém, não é pacífica mas marcada por tensões e disputas, entre as quais há diversas hierarquias e diversos projetos de masculinidade.

Temos como fonte documental a revista Playboy. A escolha parte de uma perspectiva teórica que tem nas últimas décadas privilegiado os periódicos como fonte, isso porque uma revista possibilita realizar uma gama de investigações. Nela encontramos opiniões, discursos, representações, o que se espera da ou para a sociedade nesse momento e, principalmente, em relação a projetos futuros. Além disto, segundo a historiadora Nucia de Oliveira (2007), “as revistas, ao colocarem determinados textos e imagens em destaque, põem em evidência alguns dos “modelos” da sociedade na qual estão inseridas, da qual elas próprias também são produto” (p.298).

A escolha do recorte temporal se deu pelo fato de compreendermos que, a partir da década de 1980, a sociedade brasileira passou por significativas transformações com o fim da ditadura militar e o início do processo de redemocratização. Transformações que, do ponto de vista econômico e social, levaram a chamar esse período de década perdida, embora, no plano cultural, tenha representado maior liberdade para os sujeitos, tanto em expressão quanto em comportamento. Essa mudança foi fundamental para o sucesso da revista Playboy no Brasil e para a consolidação do chamado “novo homem”.

A revista, de origem norte-americana, quando iniciou a sua circulação no Brasil, trouxe consigo dos Estados Unidos o discurso do “novo”. Victor Civita, diretor do grupo Abril, na primeira edição da revista, em 1975, escreveu que se estava lançando “uma nova revista para o novo homem de um país que se transformava dia a dia”. Seriam não apenas novos tempos em relação ao cenário cultural, econômico e comportamental, mas também de um “novo homem”. Para a revista, este homem era conquistador e, ao mesmo tempo, sensível, e até próximo ao feminismo, pois era visto como algo sexy, já que defendia a liberdade sexual. Neste sentido, a revista estabeleceu um projeto de masculinidade hegemônica para ocupar o “novo” espaço apresentado por ela.

Através da análise da publicação, buscamos problematizar esse projeto, seus processos, estratégias e práticas sociais que produziram discursos e podem ter induzido seus leitores a assumir um padrão ideal. Desse modo, analisar os discursos desse periódico responde à problematização apresentada pelos estudos de gênero que mostram “como operam alguns dispositivos e práticas culturais para construir nossas concepções sobre o mundo e sobre as coisas e coordenar as formas como agimos” (Adriana Modesto Costa, 2000, p. 9).

A partir da década de 1990, os estudos sobre as masculinidades no Brasil passaram a despertar maior interesse junto aos historiadores/as, o que provocou um maior adensamento de pesquisas com essa temática. No período, os pesquisadores/as voltaram-se para outras formas de analisar as masculinidades. Não se concentraram apenas no campo histórico; mostraram-se plurais e interdisciplinares. Antropologia, Sociologia e Literatura foram as áreas do conhecimento que mais influenciaram os estudos históricos sobre o tema. Além dessa interdisciplinaridade, encontramos a forte presença, em tais estudos, das reflexões de Miguel Vale Almeida, Robert Connell e Pierre Bourdieu, que contribuíram para a ampliação das discussões sobre o tema. A gênese destes estudos no Brasil se deu em forma de coletâneas, ou dossiês, tais como: Homens e masculinidades: outras palavras, organizada por Margareth Arilha, Sandra Unbehaum Ridenti e Benedito Medrado, em 1998; o dossiê no Cadernos Pagu, publicado em 1998, com o título Masculinidades; a Revista Estudos Feministas publicou, também em 1998, uma seção dedicada às masculinidades e republicou outro dossiê em 2013 discutindo a atualização do conceito de masculinidade hegemônica. Em relação à História, destacam-se os estudos pioneiros de Durval Albuquerque “Nordestino: Uma invenção do falo (uma história do gênero masculino - Nordeste 1920/1940”; Vanderlei Machado, “Entre Apolo e Dionísio: A imprensa e a divulgação de um modelo de masculinidade urbana em Florianópolis - 1889-1930”; Pedro Castelo Branco Vilarinho, “História e masculinidades”, etc. Além dos do campo historiográfico, os trabalhos de grande destaque no Brasil são os do psicólogo Sócrates Nolasco, denominado A desconstrução do masculino (1995), e do sociólogo Pedro Paulo Oliveira, intitulado A construção social da masculinidade (2004).

2. Metodologia

Para essa pesquisa utilizou-se uma abordagem qualitativa do método, enfatizando não a quantificação ou apenas a descrição dos dados recolhidos, mas a importância das informações que podem ser geradas a partir de um olhar cuidadoso e crítico das fontes documentais. Ou seja, observar o dito e o não dito nas colunas, propagandas e matérias da revista Playboy ao longo da década de 1980. Junto disto, tivemos o cuidado de compreender o contexto histórico no qual o documento foi produzido, assim, produzimos uma analise das intenções da revista e do grupo editorial a qual ela esteve vinculada.

Além disto, o gênero fui utilizado como uma categoria central de análise, pois o estudo dos homens na perspectiva de gênero se tem mostrado cada vez mais importante para entender as diversas relações conflituosas e tensas que envolvem as masculinidades e suas relações de poder, além de evidenciar o quanto o gênero é relacional. Esta abordagem possibilita perceber a existência de várias hierarquias no campo das masculinidades, em que uma sempre se impõe como superior às demais, exercendo uma dominação simbólica. Tal hierarquia tem em seu topo a masculinidade hegemônica como norma, a qual vai se estabelecer como elemento vislumbrado por muitos, pela possibilidade de se criar múltiplos privilégios, acessíveis a poucos, por se restringirem a determinada camada social, composta por homens ricos, brancos e heterossexuais. É justamente essa masculinidade hegemônica que buscamos compreender e analisar através das páginas da revista Playboy, problematizando sua operacionalização e representação dentro de determinada norma que se estabelecia na década de 1980.

Nesta perspectiva, de forma metodológica nos valemos do conceito de representação social enunciado por Roger Chartier (1990). Para o autor, representação social deve ser entendida como “instrumento de um conhecimento mediador que faz ver um objeto ausente através da substituição por uma imagem capaz de reconstituí-lo em memória e de figurá-lo como ele é” (p.20). As representações do mundo social são sempre determinadas pelos interesses de um grupo que as forja. Desta forma, a investigação sobre essas representações sociais supõe-nas sempre em um campo de concorrências e de competição cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação (Roger Chartier, 1990, p. 17).

Entender a revista Playboy como enunciadora de representações sociais é compreender também que esse meio de comunicação está produzindo e fazendo circular ideias e desejos de uma sociedade. Além disto, o passado passa a ser interpretado pelo historiador/a quando surgem questionamentos e inquietações em seu presente. Segundo Nucia de Oliveira (2007), “uma revista traz em seu contexto um emaranhado de ideias que, ao serem interpretadas, permitem, de diferentes formas, que os vários sentidos construídos historicamente se tornem visíveis” (p. 299).

Mesmo compreendendo a Playboy como enunciadora de representações sociais, podemos tomá-la também como propagadora de discursos; por isso, estaremos lidando na perspectiva da análise do discurso de Foucault. Isso porque tais representações são também fortes objetos para a divulgação de discursos, pois estão cheias de intencionalidades e subjetividades, tanto dos articulistas quanto do grupo editorial que compõe a revista. Foucault afirma que, por mais que o discurso seja aparentemente inexpressivo, as interdições que o atingem revelam logo e rapidamente sua ligação com o poder. É uma perspectiva, para o referido autor, dentro da qual os discursos produzem práticas. Em toda sociedade, a produção do discurso é controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar os perigos e dominar seu acontecimento aleatório (Michel Foucault, 2002, p. 8, 9). Foucault, no entanto, ressalta que as condições do funcionamento do discurso impõem aos indivíduos certo número de regras de forma a não permitir que todo mundo tenha acesso a ele.

Foucault (1979) mostra que os sujeitos são construídos social e historicamente pelas práticas que os rodeiam. Assim, muito do que somos hoje é “reflexo” do nosso tempo, mas principalmente do nosso passado. A História passa a ser vista como resultado de interpretações construídas a partir de relações de poder. Admitida esta tese, a presente investigação é um estudo produzido sob uma perspectiva  metodológica da História do Tempo Presente, não só pelo seu recorte temporal, mas também por estarmos partindo de questionamentos e inquietações vivenciadas no nosso momento histórico. Para o historiador Eric Hobsbawm (1998), o tempo presente é o período durante o qual se produzem eventos que pressionam o historiador a revisar a significação que ele dá ao passado, a rever as perspectivas e redefinir as periodizações, ou seja, a olhar, em função do resultado de hoje, para um passado que somente sob essa luz adquire significação. Assim, ao analisar as masculinidades nos anos de 1980, encontramos rupturas, mudanças e principalmente continuidades com o nosso presente.

3. Resultados

3.1. A revista Playboy

O golpe civil militar de 1964 não só afetou a liberdade dos brasileiros, mas trouxe também para a nossa sociedade mudanças políticas, sociais e econômicas, além de reorganizar de forma significativa o quadro cultural. A ditadura, de fato, não significou apenas repressão, censura e tortura, segundo Renato Ortiz (2001); “o governo militar foi responsável pelo que se chamou de modernização autoritária, a qual concretizou uma “segunda revolução industrial brasileira” (p.200), consolidando um mercado de bens materiais e impulsionando a criação de um mercado nacional de bens culturais. É a partir desse período que começamos a encontrar no Brasil grandes conglomerados que controlam os meios de comunicação, como, por exemplo, a Editora Abril.

Fundada em 1950, a editora iniciou sua produção comprando os direitos de reprodução de Pato Donald, e, entre 1950 e 1959, editou apenas sete títulos. Entre 1960 e 1969, esse número subiu para 27, e, no período de 1970 a 1979, saltou para 121 títulos. Tal aumento, significativo, pode ser compreendido pelo momento de consolidação da indústria cultural no Brasil e pelo aumento da classe média. Assim, a editora passou a se abrir para novos segmentos, deixando de lado o público feminino, seu alvo nos anos 1950, e buscou abrir-se para novos consumidores, o público masculino, oferecendo revistas como Quatro Rodas e a marca internacional Playboy.

Em 1953, nos Estados Unidos, surgiu a primeira edição da Playboy. Seu criador, Hugh Hefner, acreditava haver espaço no mercado para uma revista masculina sofisticada que refletisse o comportamento da geração pós-guerra. Playboy revolucionou o mercado de publicações ao se voltar a um público que ela própria ajudou a construir: o homem urbano, solteiro e livre para experiências que incluíam sexo antes do casamento, quando este tema ainda era tabu.

Hefner definia a sua vida como miserável, pois, criado em uma família puritana, casado e com empregos esporádicos de jornalista, sonhava com uma vida de luxo e prazer. Em 1948, quando foi lançado o primeiro livro de Kinsey sobre sexologia, Hefner ficou tão impressionado com os estudos que chegou a publicar uma resenha sobre o livro. Apoiou-se em estatísticas que mostravam que 86% dos homens mantinham relações sexuais antes do casamento; em 70% dos casos, com prostitutas; 40% dos casos observados eram de maridos que traíam suas esposas. Segundo o Historiador Tito Sena (2013), “quando Kinsey começou os seus estudos, a sexualidade, mais do que um tabu, era reprimida pelos discursos médicos com ênfase higienista por conta dos surtos de doenças venéreas” (p.125). Para Hefner, esse relatório mostrou que havia uma grande distância entre o que as pessoas ostentavam em público e seu verdadeiro comportamento.

O sonho de editar uma revista masculina vinha desde a adolescência, mas que tivesse como objetivo principal atender ao que chamava de os “verdadeiros interesses dos homens”, pois as revistas masculinas desse período se dedicavam a discutir temas como caça, pesca e outros esportes tidos como masculinos. Já Hefner acreditava que uma revista masculina deveria se preocupar com o que se passava dentro de casa, ou seja, o sexo. O sexo e a vida mundana deveriam ser os principais assuntos de uma publicação que pretendesse agradar aos homens, e, em sua opinião, tratados sem hipocrisias (Maria Celeste Mira, 1997, p. 157).

 No entanto, a revista não teve o intuito de somente falar sobre sexo. Hefner defendia que a Playboy era uma revista de estilo de vida para jovens, mostrando a esse público que sonhos e desejos poderiam ser reais. Susan Gunelius, autora do livro “Nos Bastidores da Playboy – o jeito Playboy de gerir uma marca” (2010), aponta a intenção de criar sonhos e mostrar aos leitores como viver essas fantasias na própria vida. Não por acaso, na criação da marca, elaborou-se também o mascote da revista, o coelho, um animal que, segundo Hefner, remetia à fertilidade e à sofisticação, assim como seu público: homens que desejavam um estilo de vida sofisticado.

Segundo Adriana Modesto Costa (2013), “a revista construiu para si uma imagem de erotismo inteligente” (p.28), característica que a diferenciou das demais publicações masculinas e pornográficas, vindo a ser uma das mais vendidas no mundo. Em seu início, a publicação teve que driblar os obstáculos de uma sociedade estadunidense conservadora e moralista; porém, ela trazia um grande diferencial, que era a qualidade de seus textos, artigos, entrevistas e até mesmo de sua literatura. Seus artigos falavam de comidas, bebidas, moda, viagens, esportes, carros, música e, sobretudo, sexo, exercendo assim grande influência sobre os seus leitores no que dizia respeito ao que vestir, a lugares a frequentar e a produtos a comprar.

Neste sentido, para a historiadora Patrícia Mucelin (2013), o nome original, Playboy, fazia referência ao termo aparecido nos Estados Unidos na década de 1950 e aludia a um estilo de vida adotado por homens brancos, heterossexuais e ricos, que mantinham uma vida social intensa e relacionavam-se com diversas mulheres, o que representava um sinal de status social (p.22). O próprio Hefner, em um dos seus editoriais, definiu o que compreendia por Playboy:

É ele simplesmente um gastador... um vagabundo elegante? Longe disto. Ele pode ser um jovem executivo de mente aguçada, um artista, um professor universitário, um arquiteto ou um engenheiro. Ele pode ser muitas coisas, contanto que possua um certo tipo de visão. Ele deve ver a vida não como um vale de lágrimas, mas como um tempo feliz; ele deve ter alegria no seu trabalho, sem encará-lo como o fim de todo seu viver; ele deve ser um homem alerta, um homem de gosto, um homem sensível ao prazer, um homem que – sem adquirir o estigma de voluptuário ou diletante – pode viver a vida plenamente. Este é o tipo de homem que nós temos em mente quando usamos a palavra Playboy (Maria Celeste Mira Apud DINES, 1997, p. 165).

No documentário Como a Playboy mudou o mundo, produzido pela History Chanel em 2012, Alan Dershoueitz, professor na Universidade Harvard, afirma: “a Playboy realmente mudou o mundo porque os Estados Unidos exportam atitude”.  De fato, todo esse modelo peculiar de construir e apresentar masculinidades e estilos de vida foi exportado para vários países a partir da década de 1970, quando Hefner passou a vender os direitos autorais da revista. Esse estilo de vida chegou, inclusive, ao Brasil, pois aqui a revista não apenas seguiu os mesmos moldes americanos de organização técnica, como também ajudou a formar uma masculinidade como a que se apresentou para a sociedade norteamericana, porém com alguns hibridismos, levando em conta as nossas particularidades.

A primeira edição chegou ao Brasil em 1975; porém, para driblar a censura, a Playboy foi desvinculada da sua marca internacional e publicada com o nome “Homem”, e só em 1978 começou a circular como Playboy. Nesse momento, as suas vendas dispararam. De circulação mensal, e tendo uma trajetória de sucesso, a revista chegou a vender mais de 1 milhão e 200 mil de exemplares em uma única edição. Até o ano de 2015, era comercializada pelo grupo Abril, que encerrou as suas atividades com a revista pelo declínio de suas vendagens.

Apesar de o título internacional estar proibido de circular pelo Brasil, ela surgiu em um período favorável do ponto de vista das publicações eróticas, pois, com o abrandamento da censura, em meados da década de 1970, essas revistas chegaram com grande expansão e uma infinidade de produções nacionais. Em 1978, passaram também a ser liberadas as publicações internacionais. Para Maria Celeste Mira (1997), as “revistas masculinas vão ocupar no coração dos homens a mesma posição que as revistas femininas em relação às mulheres” (p.154).

O que diferenciava a Playboy de outras revistas masculinas era o recorte social, pois, enquanto está se voltava para as camadas mais abastadas com o estilo “soft porn”, no qual a nudez era artística, com todo um cuidado técnico em mais fazer seduzir pela foto do que expor as partes íntimas, sendo, por isso, considerada uma revista erótica, as demais voltavam-se às camadas populares com uma nudez mais explícita, incluindo até atos sexuais, o que fazia delas publicações pornográficas. Segundo Maria Celeste Mira (1997), embora tanto o erotismo quanto a pornografia tematizem sempre a sexualidade, a pornografia acaba tendo uma conotação mais vil e mais baixa (p.175). Nessa discussão entre pornografia e erotismo, Nuno Cesar Abreu (1996) fornece uma boa definição:

A distinção entre obras eróticas e obras pornográficas, hoje, pode também atravessar a problemática questão de distinguir cultura de massa de cultura erudita. Sob o rótulo de erótico estão abrigadas aquelas obras que abordam assuntos relativos à sexualidade com teor “nobre”, “humano”, “artístico”, problematizando-os com “dignidade” estética; e, de pornográfico, as de caráter “grosseiro e vulgar”, que tratam do sexo pelo sexo, produzidas em série com o objetivo evidente de comercialização e de falar somente dos instintos (p.41).

A Playboy não era vista como uma revista pornográfica, pois, além de ter um cuidado estético e artístico com a nudez feminina, trazia também matérias e reportagens voltadas aos homens. A nudez seria apenas um complemento da revista. Isso a legitimava, pois quem a consumia poderia dizer que assim o fazia por seu conteúdo e não apenas pelo seu teor erótico. Segundo Victor Civita, fundador da Editora Abril, a Playboy era uma revista para ajudar o homem a tornar-se completo, com questões atuais em diversas áreas de conhecimento, indo do esporte à aventura, à arte, ao cinema, à moda e à literatura, sem deixar de abordar um assunto de grande interesse: as mulheres. Desta forma, através de vários discursos, a revista não apenas moldava uma masculinidade, como também criava um estilo de vida.

3.2. O estilo de vida Playboy

Através de editoriais, reportagens, entrevistas, colunas e, principalmente, da publicidade, a revista Playboy forneceu descrições textuais e visuais daquilo que era conveniente para compor uma masculinidade, nos mais variados aspectos do cotidiano, indo desde economia a relacionamento afetivo e sexual, vestuário, beleza, lazer, entre outros. A partir desses modelos, os leitores tiveram acesso, ao longo dos anos, a centenas de representações que comporiam o ideal de masculinidade. Cada exemplar lançado semanalmente era mais que um emaranhado de textos e imagens. Em uma analogia, a Playboy pode ser compreendida como um homem e cada edição seria uma pequena fase da sua vida em constante processo de construção e reafirmação do seu eu masculino. Os leitores, por sua vez, mais que acompanhar essa trajetória, consumiam o estilo de vida apresentado pela revista e poderiam, através do consumo, introjetar em suas vidas esse estilo.

Os discursos proferidos pela revista eram reafirmados pela propaganda, pois texto e imagens se complementavam. Ao tempo em que o periódico apresentava um estilo de vida, as peças publicitárias ofereciam os elementos concretos para poder torná-lo real aos leitores. Para Bourdieu, a posição social do sujeito dentro da hierarquia social define-se, substancialmente, pelo consumo; neste sentido, mais do que direcionar seus discursos a um público específico marcado pelo poder econômico como, por exemplo, classe A ou B, o campo publicitário buscava compreender o comportamento dos sujeitos e seus estilos de vida: conservador, moderno, alternativo, etc. Na revista, os discursos buscavam construir uma masculinidade considerada moderna e jovial, em total oposição a um modelo conservador. As publicidades caminhavam na mesma direção, pois não bastava apenas apresentar um estilo de vida luxuoso para se diferenciar; ele deveria, sobretudo, ser “moderno”.

Percebe-se, em várias publicações, que o campo publicitário criava diversos estilos de vida, pois, mais do que vender um produto, buscava-se vender sonhos e desejos. A Playboy destacava-se por uma peculiaridade: não eram as publicidades que criavam estilos de vida; ao contrário, era a revista que o fazia e as publicidades davam reforço a essa construção. 

O estilo proposto pelo periódico servia para reforçar a masculinidade hegemônica que nesse período estava sendo reconstruída, mas, para isso, era necessário diferenciar-se de outros grupos sociais e outras masculinidades. Neste sentido, cada classe social buscava a distinção pelo consumo de bens simbólicos. Não bastava apenas dinheiro para circular em determinados espaços; existiam certos “códigos” que davam acesso a esse universo, seleto e particular. Em um mesmo estrato social existem vários estilos de vida, cada qual com seu código de acesso e suas restrições. Ao que indicam nossas análises, ter condições econômicas era fundamental para tentar reproduzir o mundo criado pela Playboy. A chave de entrada era muito complexa, pois envolvia a própria masculinidade num misto de virilidade, heterossexualidade, beleza, jovialidade e, principalmente, poder de conquista e sedução. Quando o homem conseguia ter uma vida agitada com festas, luxo e uma longa lista de mulheres conquistadas, ele estava vivendo o estilo de “vida Playboy”.

O consumo podia não ser o único elemento para um estilo de vida específico, mas era importante para a distinção social; afinal, a Playboy dialogava com as classes mais abastadas, e esse modo de ser (“playboy”) não era para a classe trabalhadora braçal, nem para a classe média brasileira, embora esta, por vezes, buscasse ascender socialmente através do consumo. Bourdieu (1989), ao analisar a dominação simbólica, mostra que essa se faz por uma hierarquização de gostos e estilos de vida para os sujeitos se distinguirem uns dos outros. No campo da masculinidade apresentada pela revista, isto significa dizer que ela sempre era composta pelo “melhor”, pelo mais caro e pelo exclusivo. Ou seja, ser homem e heterossexual era para muitos, mas ser “playboy” era para poucos. Assim a masculinidade da Playboy, mais do que gênero, ia, aos poucos, demarcando e estabelecendo recordes rígidos de classe.

Desta forma, nas páginas da revista encontramos a representação de um estilo de vida só possível através de uma masculinidade, a qual era apresentada ao público leitor, mas dificilmente alcançada por ele, pois a lógica da indústria cultural de vender sobretudo sonhos e desejos em torno de certos produtos levava o seu valor a aumentar significativamente, só podendo, assim, ser acessível a poucos. A ilusão criada pela indústria cultural em torno de alguns produtos tinha por finalidade induzir as pessoas a consumirem incessantemente coisas diferentes (João Capistrano Filho, 2011, p. 94). Quando poucos alcançavam esse desejo, ela rapidamente mudava para criar novos desejos num processo sem fim, ou sem alcance. A masculinidade, por sua vez, nunca era fixa; ela sempre era fluida, pois a própria masculinidade se tornou um produto dessa indústria.

As publicidades e todo seu emaranhado discursivo e imagético eram fundamentais para compor e reafirmar a masculinidade construída pela revista. Neste sentido, devemos compreender que a publicidade não se dava por mero acaso, segundo o sociólogo Alexandre Krunger Constantino (2004), “era racionalizada e envolvia técnicas específicas para persuadir e seduzir o consumidor, pois, mais do que vender o produto, pretendia vender um conceito, um status e um estilo de vida” (p.61). É um trabalho tão minucioso que gera um código capaz de fazer um produto ser reconhecido pelo público pretendido como objeto de distinção, de identidade. Assim, determinados produtos e marcas criam um valor simbólico, que é acrescido ao seu valor final, garantindo acesso e exclusividade a poucos, posto tratar-se não apenas de um produto caro, mas de uma imagem que a pessoa que o compra carrega.

Nas entrelinhas das propagandas, encontramos representações prescritas para o masculino, as quais, além de normatizar a masculinidade, traziam expectativas sociais distintas quanto a ser homem, a modelos de virilidade e corpo, além de cuidados sutis com esse corpo para conseguir chegar ao que se compreendia como perfeição. A seguir fornecemos um exemplo do que afirmamos. 

Imagem I

Fonte: Revista Playboy, n. 6, jun. 1988, p. 33,34

Esta propaganda da grife norteamericana Calvin Klein, produzida na revista no ano de 1988, é um bom exemplo da cultura masculina defendida, pois a peça publicitária não está vendendo apenas uma roupa íntima. Para a revista, apresentava-se também como um ideal de masculinidade: homem jovem e com corpo escultural, remetendo a força, agressividade e virilidade como expressão do estado natural do “ser homem”, acrescido da cultura e sofisticação ensinadas pela revista ao homem que desejava ser esse “playboy”. Neste sentido, compreendemos que o consumo representa uma forma de identificação social, isso porque, segundo o linguista Newton Guilherme Carrozza (2010), “ao consumir determinadas marcas ou produtos, a pessoa estabelece uma relação de pertencimento social” (p.50). O autor afirma ainda que não podemos analisar o consumo de forma isolada, sem compreender que ele se dá como prática social e, sendo assim, está inserido em uma sociedade com suas determinações históricas.

Percebemos que a representação desse produto, por si só, não persuade ninguém: serve apenas para racionalizar a compra (Jean Baudrillard, 2000, p. 292). A propaganda vende também uma imagem que nem sempre condiz com a realidade do comprador, mas que é induzido a querer adotar o modo de vida que lhe é sugerido. Esses discursos e mecanismos, que moldam corpos, não se dão pela repressão, mas pelo que Foucault (2000) chamou de estímulo – mostrar e fazer-se desejar –, desencadeando o investimento positivo sobre o corpo. Neste sentido, a indústria cultural seria pioneira nesse modo de controle dos corpos e das condutas, valendo-se dos periódicos de entretenimento e informação como instrumentos específicos de persuasão. O modelo de masculinidade apresentado pela peça publicitária era o mesmo apresentado pela revista, pois remetia, sobretudo, à jovialidade e ao culto de um corpo perfeito. Esses instrumentos de controle têm a função de dispositivo para designar a rede que se estabelece entre o dito e o não dito, os discursos e as práticas (Michel Foucault, 2000). Para Giorgio Agamben (2007), dispositivo é “cualquier cosa que tenga de algún modo la capacidad de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar y asegurar los gestos, las conductas, las opiniones y los discursos de los seres vivientes” (p.6). O sujeito, portanto, é entendido por ele como o que resulta da relação entre seres viventes e dispositivos.

Foucault (1979) mostra, ainda, que os sujeitos são construídos social e historicamente pelas práticas que os rodeiam. Muito do que somos hoje, dessa forma, é “reflexo” de nosso tempo, e, principalmente, de nosso passado. Nesta perspectiva, a História passa a ser vista como o resultado de interpretações construídas a partir de relações de poder. A masculinidade operada no tempo presente da década de 1980 era reflexo do seu passado; assim, não era algo que estava surgindo naquele momento, mas estava sendo reconfigurada conforme as transformações sociais do período, pois nada é imutável, tampouco a masculinidade.

Todo esse aparato discursivo, expresso em textos ou imagens, estava reconstruindo um ideal de masculinidade. Foucault (1979) afirma ainda que, por mais que o discurso seja aparentemente inexpressivo, as interdições que o atingem revelam logo, e rapidamente, sua ligação com o poder. Para o referido autor, os discursos produzem práticas. No caso da revista Playboy, foram eles que ajudaram a produzir em suas páginas uma nova masculinidade e um “novo homem”. 

3.3. Um “novo homem”

A essência masculina, segundo os vários discursos que compunham as masculinidades, era, sobretudo, não ter medo, não chorar, não demonstrar sentimentos, ser forte, ser ativo, ter coragem, entre outros atributos. Todos esses eram o extremo oposto do que se esperava das mulheres. Além disto, haviam sido construídos diversos símbolos que representavam a masculinidade, como bebidas, carros, cigarros, esportes radicais e, principalmente, o espaço público, que faziam parte do universo masculino. Embora existam diversas masculinidades e cada uma com suas especificidades e subjetividades, esses elementos eram universais e tidos como naturalizados. A grande diferença, e talvez contribuição, da revista Playboy, foi mostrar que esses elementos eram, em certa medida, ultrapassados, pois o “novo homem”, que desejasse incorporar para si a modernidade dos novos tempos, não precisaria mais seguir essa norma à risca.

O discurso de um novo homem não foi inaugurado pela Playboy, pois, na década anterior, nos anos 1970, já se discutia, nos meios de comunicação, e principalmente através das publicidades, o surgimento de um “novo homem”, que havia sido construído para atender a uma demanda social, tanto de identificações quanto de mercado, buscando criar novos consumidores (Douglas Voks, 2012, p. 34). A partir de então, desde os anos de 1970 até os dias atuais, encontramos esses discursos do novo.

O novo sempre seria “melhor” que o “antigo”, inaugurando um círculo de renovação da masculinidade que, de tão elaborada e reelaborada, chegou à década de 1990 com o que se chamou de crise da masculinidade. Esse círculo sempre atende a algum interesse, geralmente ligado ao mundo do consumo, que vai ditando comportamentos, hábitos e estilos de vida. Segundo a historiadora Cláudia Regina Ribeiro (2007), “o que se compreende por “ser homem” no sentido mais tradicional da expressão tem relação direta com o momento histórico e com os valores de uma dada sociedade. Na contemporaneidade, esses padrões, ou lugares sociais, parecem estar mudando, também impulsionados pela mídia” (p.217). Assim, sempre que se criam novos comportamentos, tem-se a necessidade de criar um “novo homem”, pois, como Michel Foucault (1997) nos mostrou, é sobre o corpo que nas sociedades modernas se concentra o foco do poder disciplinar.

A masculinidade reelaborada por Playboy trazia um novo homem que expressava as suas emoções e estava até mais próximo da mulher e das crianças quando viesse a ser pai. No entanto, no modelo hegemônico de masculinidade, construído a partir de valores patriarcais, depois reelaborado pela revista e em alguns momentos criticado, ainda preponderava a ideia de que a masculinidade deveria ser viril. A virilidade, segundo Pierre Bourdieu (2005), é uma noção relacional, construída diante de outros homens, para outros homens e contra a feminilidade (p.67). A palavra virilidade tem sua origem no vocábulo latino virtus. No idioma latino, significa virtude, ou seja, ser homem viril é uma qualidade moral, por isso deve ser tão exacerbada e enaltecida. Essa virilidade, e, por conseguinte, uma masculinidade que se transforma em um plural, só existe em sociedades que diferenciam os atributos característicos das mulheres e dos homens, o que torna os conceitos de masculinidade e feminilidade pares dicotômicos (Robert Connell, 1997, p. 8). A Playboy não apresentava uma virilidade baseada em força física e agressão, mas uma virilidade pautada no poder de conquista e sedução.

Em uma coluna intitulada “A doce vida de Playboy” encontramos uma matéria apontando o “in” e o “out” da sedução, que buscava mostrar para os leitores o que deveriam, ou não, fazer ao sair com uma mulher. Abaixo, selecionamos algumas passagens dessa coluna:

IN

Olhar sério para a moça com um ar de elegante deslumbramento;

levar o café da manhã para a namorada;

dançar a dois (mostrando que alguns homens ainda gostam);

flores (porque não engordam);

telegrama fonado de amor, citando um poema de drummond;

pagar á vista (sempre).

OUT

Piscar o olho, e mandar torpedos através do garçom;

boliná-la debaixo da mesa sem aviso prévio;

cartão de crédito;

discoteca;

esperar que ela lhe traga o café da manhã.

(REVISTA PLAYBOY, n. 147, out. 1987, p. 25)

Essa coluna mostra que a masculinidade operacionalizada pela revista era sobretudo romântica e sensível; porém, os sujeitos que assumiam para sua vida essa postura não deixavam de “ser homem”. Assim, a Playboy mostrou aos seus leitores que novos comportamentos poderiam ser adotados sem abalar a masculinidade heteronormativa. Essa sensibilidade seria uma arma para um jogo de conquista e sedução, ou seja, ser próximo às mulheres não faria do homem uma mulher ou o transformaria em afeminado; ao contrário, isso faria dele, como a própria revista apontava, um grande “pegador”.

Esses discursos e representações poderiam, ou não, ser incorporados pelos seus leitores, pois não podemos compreendê-los apenas como passivos. Nesse emaranhado de representações, encontramos resistências, podendo haver também uma interação a partir dos seus valores culturais, dando um novo significado e um novo sentido ao que lhes era apresentado. Esse discurso do “novo”, porém, era necessário e fazia muito sentido nesse momento histórico de mudanças e transformações, pois, como se estava construindo uma nova sociedade democrática, dever-se-iam construir também novos sujeitos. O anúncio do “novo” apresentava uma ideia de identidades fluidas e em constante mudança; nada mais seria fixo e rígido como em tempos anteriores.

Essa operacionalização de ideal masculino perpassou por diversas representações, seja nas colunas, matérias, artigos de opiniões, seja em imagens com editorais de moda ou anúncios publicitários. Esse discurso do novo estava sempre caminhando junto com um ideal de jovialidade, o de não apenas ser jovem em idade, mas em atitudes e comportamentos que remetiam a uma liberdade e, principalmente, à capacidade de mudança, em não estar associado a antigos comportamentos.

Para a Playboy, o homem poderia ser sensível, ter uma boa aparência, gostar de romances, ser galante, educado, e deveria compreender o corpo feminino e seus desejos, pois a força e a agressividade passaram a ser vistos como algo não civilizado e ultrapassado. O discurso era de que os homens poderiam e deveriam ser livres. Não havia mais necessidade de seguir uma norma rígida. Ao mesmo tempo, porém, há uma grande contradição, pois, para acessar a “liberdade” defendida pela revista, exercia-se uma grande pressão sobre os homens. Eles deveriam ser bem-sucedidos profissionalmente e, por consequência, financeiramente, além de ter também um ótimo desempenho sexual. Nos anos 1980, não encontramos qualquer menção sobre a impotência sexual. Isto nos leva a crer que, nesse período, o “homem playboy” não poderia jamais falhar em sua principal missão que era ser conquistador e ter como objetivo final o ato sexual. Neste sentido, a revista apresenta diversos manuais de como os homens deveriam satisfazer as mulheres e como seduzi-las.

Ao mostrar aos homens que eles não precisavam seguir as normas rígidas da sociedade, a revista prescrevia novas normas, pois, não se enquadrar no que se esperava de um homem não o legitimava nessa masculinidade e não o transformava em “homem playboy”; consequentemente, não era um homem moderno, pois todas as representações de um novo homem ou de uma nova masculinidade vinham imbuídas de discursos sobre “ser moderno”. Para o historiador Marcel Arruda Furquim (2016), a revista Playboy “constrói e reconstrói padrões heteronormativos, sustentados em novos modos de se praticar a heterossexualidade (um novo lar, uma nova família, novas formas de se viver)” (p.78), o que se configura, também ao longo dos anos de 1980, em um novo homem e uma nova masculinidade.

Os discursos da revista destinavam-se aos self-made-man, ao homem que se faz a si mesmo, sempre em busca do sucesso. Assim, as representações eram sempre de homens bem-sucedidos e ricos, com uma vida social baseada no consumo e orientada pela revista, estabelecendo-se um mundo marcado por desejos, ego, prazer e flexibilidades. Nada mais seria rígido como os padrões anteriores; tudo podia ser criado ou transformado. Ao afirmar que o homem fazia a si mesmo, não podemos esquecer que sua construção poderia ser orientada pela revista. Assim, mais do que discutir masculinidades dentro de um plano econômico de realização profissional e consumista, a revista discutia também questões políticas, pois essa masculinidade podia ser compreendida como liberal e a favor da abertura política, pois todos os discursos circulavam em torno da liberdade, insinuando, inclusive, que o período ditatorial deveria ser deixado no passado e fixar o olhar apenas no futuro, num novo Brasil em construção, no qual esse “homem playboy” viria a ser uma peça importante para o projeto de futuro que se almejava.

De políticos a grandes empresários, encontramos inúmeras entrevistas de homens vistos como o futuro do País, ou exemplos de sucesso econômico ou exemplos de liderança política. Os homens entrevistados eram a personificação do que seria o “homem playboy”, pois ocupavam lugar de destaque na sociedade brasileira, e, principalmente, estavam sempre acompanhados de belas mulheres.

Mesmo exaltando o lado público de uma masculinidade de homens poderosos e bem-sucedidos, a revista traz também o lado íntimo e pessoal; assim, alguns comportamentos e sentimentos masculinos que não eram apresentados no espaço público começaram a ser mostrados como algo normal e aceito. Em uma coluna de 1987, uma matéria com o seguinte título: “o que elas curtem no discreto charme dos homens tímidos”, discute algo muito importante, que eram os homens que não possuíam uma postura dominante diante das mulheres, e que para a revista continuavam homens. Era apenas uma forma diferenciada de comportamento para além dos antigos modelos padronizados. Selecionamos algumas passagens da referida matéria:

Conheço você, usa óculos, não é? Também se esconde atrás de uma barba? Sei. É, conheço você, mas não venha gaguejar, dizendo que essa timidez lhe traz problemas com as garotas. Se você for um tímido mais deslocado, no íntimo já percebeu que muitas vezes esse seu jeito pega superbem. Mas se for do tipo crônico, que tem vergonha de reconhecer o próprio charme da inibição, então, cara, está na hora de você saber: nós achamos você o máximo. [...] Eu disse que gostamos dos tímidos porque a delicadeza de toda a aproximação é muito mais elegante e até erótica, uma cor vermelha no seu rosto vai apenas mostrar a reação sanguínea, viva, de um homem que admite ser o que é (REVISTA PLAYBOY, Nov. 1987, ed. 148, p. 36) (Grifos nossos).

A revista, ao buscar apresentar outro lado possível da masculinidade, traz à tona masculinidades que eram até então consideradas fracas ou que podiam causar aversão nas mulheres. Na década de 1970, o homem dominador, que tomava a iniciativa, era o modelo ideal de masculinidade (Douglas Voks, 2014). Nos anos de 1980, porém, a revista mostrou que todo homem poderia ser um conquistador sem ter que abrir mão das suas características. Ao trazer essa representação, a revista abriu a possibilidade para que vários homens pudessem se identificar e se sentir aceitos, sem precisar seguir a norma tradicional. Seus corpos continuavam comandados por discursos e relações de poder, mas conduzidos para uma nova norma construída pela revista. Percebemos também que essa “timidez” era aceita nas relações afetivas ou sexuais, pois, mesmo o homem podendo ser tímido com as mulheres, na vida profissional sempre deveria ser um líder. A liderança e o sucesso profissional são descritos quase como algo intrínseco a essa masculinidade.

A formação da masculinidade perpassa vários campos. Mais do que a esfera política e econômica, buscou-se desenhar a masculinidade em questões culturais e sociais, utilizando-se principalmente do consumo para atingir esse objetivo. Na Playboy, tudo era mercadoria e tudo poderia ser consumido. O próprio estilo de vida nela apresentado era um estilo a ser consumido, principalmente pelos seus anúncios publicitários.

Assim, outro elemento para compor a masculinidade foram os cuidados estéticos com o corpo e a aparência. Adotar esse estilo de vida requeria que os homens seguissem determinados comportamentos e hábitos, pautados em práticas de embelezamento e moda. Segundo o historiador Marcel Arruda Furquim (2016), ao agenciar os corpos, a revista constrói o gênero, e institui pedagogias da masculinidade, pressupondo práticas e disciplinas a serem seguidas (p.71). Assim, o cuidado com a saúde e com o corpo eram fundamentais, o que explicava as diversas colunas nas quais se apontavam os cuidados que os homens deveriam ter em cada estágio da sua vida. A revista criou discursos e representações que apontavam e ensinavam como deveria ser e parecer um homem.

4. Conclusões

Essa “nova masculinidade” foi construída a partir de novos parâmetros, pelos quais se excluíam a força física e a agressividade para entrar em cena um homem que podemos chamar de “homem playboy”, que exercia a sua masculinidade através do poder de sedução e da conquista das mulheres. Esse homem era culto, vaidoso, antenado com o mundo da moda, frequentava lugares requintados e mostrava-se completamente sensível, mas nunca deixando de lado aquilo que a revista apresenta como a essência masculina, a virilidade.

Ao mesmo tempo, analisando os discursos e representações produzidos pelo periódico na década de 1980, percebemos que o “novo” estava associado a uma repetibilidade, pois, em períodos diferentes, reformulavam-se as masculinidades, embora se preservassem continuidades; nunca era algo totalmente novo. O padrão heteronormativo e dominador não é alterado com essas representações. O que há de novo, porém, é a publicidade do lado íntimo e pessoal dos homens, os quais eram apresentados apenas na esfera pública. A Playboy muda a masculinidade ao apresentar um lado sensível, até então exclusivo das mulheres. Neste sentido, há uma ruptura nas relações de gênero, que começa a ajudar a descontruir ideias biológicas predeterminadas para homens e mulheres. No entanto, mesmo com essa ruptura, esse “novo homem” continuava sendo representado como superior às mulheres.

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1. Mestre em História e doutorando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Brasil. Bolsista com dedicação exclusiva CAPES. Email: douglas_voks@hotmail.com


Revista ESPACIOS. ISSN 0798 1015
Vol. 39 (Nº 09) Año 2018

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