ISSN 0798 1015

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Vol. 38 (Nº 38) Año 2017. Pág. 26

Gestão dos recursos naturais e a crise da água: o caso do assentamento Urucum no Mato Grosso do Sul-MS, Brasil

Natural resources management and water crisis: The case of Urucum settlement in Mato Grosso do Sul-MS, Brazil

Poliana Oliveira CARDOSO 1; José Ambrósio FERREIRA NETO 2; Diego Camelo MOREIRA 3

Recibido: 15/03/2017 • Aprobado: 13/04/2017


Conteúdo

1. Introdução

2. A gestão de recursos naturais e a crise da água

3. Material e Métodos

4. Caracterização da área de estudo

5. Resultados e Discussão

6. Considerações Finais

Referências


RESUMO:

Este artigo objetiva analisar o uso e gestão da água a partir da realidade vivida por 87 famílias residentes no assentamento Urucum localizados no município de Corumbá, Estado do Mato Grosso do Sul, que sofrem com a escassez desse recurso. A coleta de informações se fez por meio de entrevistas e aplicação de questionários e os dados tratados pelo aplicativo Statistical Package for the Social Sciences. Os resultados mostraram que o aumento da população, diferentes interesses de exploração, infraestrutura de distribuição, hábitos não sustentáveis, pouco envolvimento dos atores sociais e a falta de medidas restritivas levaram ao quadro atual.
Palavras-chave: gestão de recursos naturais, crise da água, gestão dos recursos hídricos.

ABSTRACT:

This article aims to analyse the use and management of water from the living reality by 87 families living at the Urucum settlement located in the municipality of Corumbá, Mato Grosso do Sul, which suffer from a shortage of this resource. The information was collected through interviews and questionnaires and the data was processed by the Statistical Package for the Social Sciences application. The results showed that the increase in population, different interests of exploitation, distribution infrastructure, unsustainable habits, little involvement of social actors and the lack of restrictive measures have led to the current situation.
Keywords: Management of natural resources, water crisis, water resources management.

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1. Introdução

O esgotamento dos recursos naturais tem se constituído como problema de visibilidade, sobretudo quando se leva em consideração os reflexos gerados pelo risco de escassez dos recursos que geram prejuízo ambiental, econômico e social. Os recursos hídricos em muitos países perpassam por essa problemática ao apresentar um cenário de degradação ambiental pelas formas como os atores sociais se apropriam e se relacionam com a água, o que leva em alguns casos a adoção de medidas restritivas diante o risco de escassez que pode ter consequências a produção industrial, o abastecimento da população e a agricultura. Essa temática como salientam Barbosa e Barbosa (2016) é relevante na medida em que é crescente os conflitos por esse recurso relacionados a posse, uso e propriedade sobre o direito de águas. Ainda de acordo com os autores, trata-se de uma discussão de escalas que deixam de ser locais abrangendo realidades regionais e globais.

No Brasil, a região sudeste recentemente foi uma das mais afetadas pela falta de água; até um passado recente a maior parte da população da cidade de São Paulo, por exemplo, não poderia imaginar que seria necessário adotar uma rotina de rodizio de abastecimento, caracterizada por uma crise hídrica tão aguda que em alguns momentos a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo cogitou a necessidade de um rodizio mais severo que determinava até cinco dias sem fornecimento de água. Outros estados brasileiros enfrentaram situação similar, como Minas Gerais e Espírito Santo, que atravessaram uma das piores secas no Rio Doce em 2015, fazendo com que a foz do rio mudasse de lugar. O Jornal Estado de Minas divulgou uma série de reportagens sobre o tema intitulada “Amarga Agonia” na qual mostrou que o somatório dos efeitos do desmatamento e da degradação desde a nascente do rio até o manancial como o despejo de esgoto na calha do rio e seus afluentes, a diminuição das chuvas, dentre outros fatores, resultaram na interrupção do leito e sua chegada ao Oceano Atlântico, além de ter comprometido a captação de água de muitas cidades desses estados.

Tendo em vista os problemas enfrentados pelo Brasil relacionados ao problema de falta de água em algumas regiões, e a relevância da discussão a respeito de um recurso natural que figura de acordo com a Organização das Nações Unidas - ONU como um componente dos direitos humanos, o objetivo do presente estudo é evidenciar fatores importantes relacionados ao uso e gestão da água a partir da realidade enfrentada pelas famílias do assentamento Urucum localizado no município de Corumbá no estado do Mato Grosso do Sul, em decorrência aos problemas enfrentados pelas famílias que residem no assentamento devido à escassez de água na área.

A tentativa de compreensão dos principais fatores que contribuíram para o quadro atual vivido pelas famílias do assentamento Urucum auxilia a reflexão de que alternativas podem ser buscadas em situações similares que indiquem o desgaste deste recurso. No caso em estudo, o problema com a falta de água interfere no consumo prioritário das famílias, produção agrícola e afazeres domésticos além de desencadear conflitos internos e externos ao assentamento.

2. A gestão de recursos naturais e a crise da água

Para (Weber, 2007, p.21) a gestão dos recursos naturais surge como um dos componentes mais importantes no processo de regulação entre sistemas socioculturais, econômicos e o meio ambiente. De acordo com o autor o acesso aos recursos pode fazer parte de uma dinâmica de dilapidação, quando há ausência de limitação e controle de acesso, como também possuir uma dinâmica de superinvestimento quando se trata de um tipo de extração vinculada ao mercado. Em se tratando da tentativa de orquestrar o acesso e uso dos recursos naturais o autor menciona que existem diferentes causas que poderiam explicar os fracassos dos projetos de intervenção que tentam resolver os problemas por meio da regulação do uso, no entanto considera importante a hipótese de que seria um erro se pautar em processos que visam à mudança da dinâmica social entre homem/ ambiente vinda de fora e o fato de que existem alguns processos que não contam com a mediação entre os atores sociais envolvidos internos e externos. Sendo necessário assim, estabelecer uma gestão integrada que consiga articular os diferentes atores que fazem parte de uma determinada realidade assim como os diferentes interesses envolvidos. Ainda sob a perspectiva do autor ao se tratar do tema da gestão dos recursos naturais, a literatura aponta que a característica fundamental dos recursos extraídos é a propriedade comum ou coletiva, e que inúmeros são os conflitos ligados às condições de acesso e utilização dos mesmos.

Nesse sentido, (Ollagnon, 2007, p. 172) apresenta o enfoque patrimonial, utilizado para explicitar um novo tipo de gestão da natureza que estabelece a participação de novos tipos de gestores e criação de novas formas de gerir, onde “todos os atores da sociedade deverão se constituir em gestores da qualidade da natureza, na medida em que todos eles influenciam mais ou menos diretamente a qualidade desta” (OLLAGNON, 2007, p. 172). O autor coloca em discussão a gestão da natureza como um patrimônio, baseando-se na constatação de que diferentes enfoques com origem em diferentes áreas do conhecimento não permitem que os problemas que envolvem os recursos naturais sejam resolvidos, uma vez que abrangem instituições, linguagens e procedimentos de ação distintos. (Ollagnon, 2007, p. 174) chama atenção para o fato de que muitas vezes enfoques diferentes são complementares e se estimulam mutualmente, sendo para ele o primeiro desafio na busca pela gestão integrada dos recursos naturais, pelo ponto de vista patrimonial, saber superar a tendência das intervenções isoladas, sabendo trazer para os processos a interdisciplinariedade.

Seguindo a perspectiva do autor, o enfoque patrimonial se baseia no reconhecimento da complexidade, globalidade, totalidade e interatividade características da relação existente entre a sociedade e os ecossistemas. O que implica em legitimar a existência de sistemas ou conjuntos de elementos em interação que formam uma totalidade envolvendo elementos físicos, seres vivos, ecossistemas, atores sociais, decisões, ações etc. O autor destaca ainda que o enfoque patrimonial torna-se importante para o esforço de gestão de certos bens a partir do momento em que sua degradação altera a autonomia e a identidade de um titular. O titular patrimonial é aquele que possui uma relação patrimonial com elementos materiais e imateriais do meio ambiente tornando-se assim um gestor patrimonial.

Para (Ollagnon, 2007, p.187) o titular gestor pode ser uma pessoa física, jurídica ou coletiva desde que disponham de todos os atributos de decisão que lhe são delegados em um contexto de leis que regem a apropriação pública ou privada. O titular comunidade assume uma constituição apenas na medida em que as unidades de ação lhe conferem consciência na ação. Assim, a comunidade se torna realmente um ator diante de uma situação de problema, por meio de seu engajamento, e assim vai ganhando vida como um ator social por meio de seus interesses e ações.

(Montgolfier e Natali, 1997, p. 362) complementam a respeito do enfoque patrimonial ao explicar que o mesmo se baseia no fundamento ético que para um indivíduo ou organização uma dimensão essencial ao apropriar um recurso seria a preocupação permanente pela preservação da liberdade de escolha daqueles que o sucederão implicando assim a coação imposta pela irreversibilidade, entendendo o patrimônio como um legado.

Em (Mckean e Ostrom, 2001, p.81) propriedade comum ou regime de propriedade comum que interessa diretamente este estudo, se refere aos arranjos de direito de propriedade onde os grupos de usuários compartilham direitos e responsabilidades sobre os recursos, sendo a propriedade comum caracteriza pelo acesso limitado a um grupo específico de usuários que possuem direitos comuns. Os autores mencionam que no clássico ensaio de Hardin “tragédia dos comuns” eram apontados os prejuízos do livre acesso, no entanto não era claramente esclarecido que o problema do livre acesso era a ausência de direitos de propriedade ou de regimes de manejo e não o compartilhamento do uso dos recursos.

(Mckean e Ostrom, 2001, p. 82) explicam ainda que a literatura aponta uma taxonomia para destacar a diferença entre sistemas de livre acesso e propriedade comum distintas em quatro categorias de propriedade: pública, privada, comum e de livre acesso. Os autores chamam atenção para o fato de que propriedade comum é uma propriedade privada compartilhada, mostrando que as quatro categorias não são compartimentadas muito menos excludentes.

Mostram também que em vários sistemas de recursos, a exemplo das bacias hidrográficas os usos feitos em determinadas zonas afetam opções e níveis de produtividade em outras. Se essas áreas pertencem a proprietários diferentes que tomam decisões de forma individual esses podem acabar mutuamente prejudicados. Uma alternativa apontada pelos autores é o estabelecimento de acordos e a criação de um regime de propriedade comum que incluam decisões coletivas e o manejo de recursos. Propriedades de regimes comuns se tornam uma boa opção pela possibilidade de promover acordos coletivos com regras de uso restritivas, além do fato de representar uma possibilidade de institucionalizar regras coletivas de manejo.

Trazendo essa discussão a respeito da gestão integrada dos recursos naturais bem como a possibilidade de novos tipos de gestores e novas formas de gerir para a realidade das bacias hidrográficas, em um contexto de risco de crise da água, objeto desse estudo, Tundisi et al. (2008) argumentam que alguns especialistas defendem que a crise da água é resultado de um conjunto de adversidades ambientais agravadas por fatores que estão ligados à economia e ao desenvolvimento social. Denotam que o agravamento e a complexidade da crise decorrem de problemas reais de disponibilidade e aumento da demanda, assim como também de um processo de gestão ainda setorial diante um problema.

Os autores também enumeram diversas causas que podem estar relacionadas ao problema de crise atual: a intensa urbanização; o estresse e a escassez de água em algumas regiões devido ao aumento da demanda; a infraestrutura pobre e em estado crítico; as mudanças globais em eventos hidrológicos além dos problemas de falta de articulação e ações na governabilidade de recursos hídricos. Soares (2010) elucida que a crise existe e, em sua grande maioria é caracteriza pela má gestão.

Theodoro (2013) destaca que o Estado brasileiro foi participando gradativamente no decorrer da história como o principal ator social definidor de linhas e regras de gerenciamento da água. Sua atuação foi crescendo ao passo que foi se criando instituições relacionadas ao controle deste recurso, somente no ano de 1997, com a Lei Pública Ambiental Federal nº 4.433/97 que houve um fortalecimento da proposta do modelo de gestão integrado.

Barbosa e Barbosa (2016) mostram que o Plano Nacional de Recursos Hídricos brasileiro é ancorado no arranjo institucional da Lei nº9. 433/97 que estabelece a descentralização da sua organização e administração, ou seja, o poder público deve contar com a participação dos usuários e comunidades. Esse novo modelo de gerenciamento como explica Theodoro (2013) consolida a criação de Comitês e Agências de Bacias dentro da estrutura administrativa com o objetivo de normatizar a gestão por meio de arenas deliberativas das demandas locais, além de se colocar como uma forma de inserção de novos atores sociais nesse processo. No entanto, o autor expressa uma preocupação relacionada ao funcionamento desse arranjo, que seria a pouca capacidade de infraestrutura de articulação que acaba por vezes legitimando um modelo insuficiente para interação de todos os segmentos de beneficiários.

Para Barbosa e Barbosa (2016) esse aparato legal não deve ser descuidado pelos órgãos de controle para que essa articulação seja efetivamente alcançada e a sustentabilidade da gestão de águas em longo prazo possa ocorrer contando com planejamentos eficientes, ações preventivas e uma abordagem integrada. Para Theodoro (2013) não basta a esse processo de gestão dos recursos hídricos que ele ocorra integrando apenas entre as instituições, é importante a participação de representantes e comunidades de forma efetiva na organização deste tipo de arranjo.

3. Material e Métodos

O presente artigo apresenta um estudo de caso a respeito da realidade enfrentada pelas famílias que residem no assentamento Urucum diante a escassez de água na área. O desenvolvimento da pesquisa ocorreu em duas fases: a primeira feita a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental com o propósito de fazer comparações com casos semelhantes, buscar fundamentação teórica e conhecer o histórico da região e das famílias deslocadas para o assentamento Urucum. A respeito dessa fase se destaca que no decorrer da pesquisa documental, um documento importante ao desenvolvimento do presente trabalho foi o Levantamento Socioeconômico organizado por Muniz et al. em 2003. Há mais de dez anos esses autores elaboraram um diagnóstico das famílias residentes no Urucum e, já naquela época, observaram muitos problemas que ainda hoje persistem, como será exposto adiante.

A segunda fase da pesquisa foi de coleta de dados em campo e consistiu na aplicação de questionários com perguntas abertas e fechadas, entrevistas semi-estruturadas e observação de campo. Para a análise dos dados colhidos em campo utilizou-se do aplicativo Statistical Package for the Social Sciences (SPSS).

4. Caracterização da área de estudo

A área na qual se criou o assentamento Urucum, no município de Corumbá, estado do Mato Grosso do Sul, como expõem Muniz et al. (2003), no passado era a antiga fazenda Urucum que em 1914 contava com uma excelente infraestrutura servida por um córrego volumoso e perene que nascia no morro do Urucum caracterizando a área como uma propriedade que possuía grande quantidade de água distribuída entre lagos e cascatas. Os autores explicitam que a propriedade abrigava, em média, cerca de 50 pessoas. Após a morte do patriarca da família, a fazenda caiu em decadência e a maior parte da família se mudou para a cidade, apenas um dos herdeiros construiu um pequeno balneário, que funcionou até 1967. Em 1984 a fazenda foi declarada prioritária para fins de reforma agrária e os proprietários entraram em negociação com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA, autarquia federal responsável pela reforma agrária e realização do ordenamento fundiário no Brasil.

É nesse contexto de desapropriação do imóvel que foi criado o assentamento Urucum em 1986. Institucionalizado com uma população composta por 61 famílias de pequenos proprietários deslocados compulsoriamente em decorrência dos grandes empreendimentos de infraestrutura, vindos de Ilha Grande no estado do Paraná, que foram reassentadas juntamente com mais 26 famílias que já viviam na região de Corumbá na terra desapropriada, integrando uma população total de 87 famílias.

 Muniz et al. (2003), expressam que a origem do assentamento começou no Sul do Brasil, em Ilha Grande, divisa entre os estados do Paraná e o Mato Grosso do Sul em Ilha Grande, área que começou a ser povoada na década de 1960, com famílias de pequenos agricultores e desempregados vindos de diferentes áreas rurais e urbanas do Brasil (Muniz et al.,2003). Os moradores de Ilha Grande sobreviviam da agricultura e, sobretudo da pesca.

A partir de 1976 começaram as enchentes em Ilha Grande em decorrência da Barragem de Ilha Grande, que teve como principal função segurar terra e areia para evitar o assoreamento do grande lago da usina de Itaipu, uma empresa geradora de energia elétrica binacional, metade brasileira e metade paraguaia. Esse processo fez com que os moradores que pescavam e plantavam nas ilhas ficassem praticamente sem os meios de subsistência. Até 1983 as enchentes provocaram o deslocamento de muitos moradores e algumas famílias entraram em acordo com o INCRA, que definiu a troca de “terra por terra” como mais aceitável pelos atingidos. Desse modo, como exposto anteriormente 61 famílias fizeram parte de um processo de reassentamento, no município de Corumbá, no Mato Grosso do Sul.  

Atualmente o assentamento Urucum é emancipado pelo INCRA desde o ano de 2000 e sob o ponto de vista institucional após ter sido beneficiário de diversas políticas públicas de apoio, está apto a integrar-se à vida do município de Corumbá, não sendo mais responsabilidade do governo federal. A área que no passado era caracterizada pela fartura hídrica, hoje sofre com a falta de água que é um dos principais problemas enfrentados pelos moradores.

Devido ao fato de o município de Corumbá possuir grande potencial mineral, diferentes empresas mineradoras se estabeleceram na região, interessa destacar para esse estudo o fato de uma dessas mineradoras  desenvolver suas atividades de exploração na área do Morro do Urucum, vizinha ao assentamento pesquisado. As atividades da mineradora são vistas por parte da população do assentamento como um dos principais fatores que levaram ao quadro atual. Destaca-se ainda que mediante uma decisão judicial essa mineradora tem o compromisso de cumprir as atribuições de um acordo feito entre ela e os moradores do assentamento Urucum que estabelece que no período de 40 anos, a mineradora deve assumir a responsabilidade de bombear uma vazão diária de 357,5 m³ de água disponibilizados de 9 horas da manhã às 17 horas da tarde para o assentamento em decorrência ao problema de escassez do recurso.

5.Resultados e Discussão

De acordo com o censo realizado durante a pesquisa de campo realizada para esse estudo, evidenciou-se que o contingente populacional que reside no assentamento Urucum, era de 256 pessoas. Soares (2010) e Tundisi et al. (2008) pactuam ao considerar que a demanda para diferentes tipos de uso mesmo que aconteça em um contexto de abundancia, ocorre em um ritmo mais acelerado que a reposição feita pelo ciclo natural. No caso do assentamento Urucum ainda que se tratasse de uma área com aparente abundância hídrica, o aumento da população significou maior demanda de água para consumo prioritário das famílias e para as atividades produtivas. Mais tarde essa demanda aumentou com as atividades desenvolvidas pelas mineradoras que se instalaram na região, completando o quadro de pressão sob esse recurso.

Destaca-se que 89% dessa população dependem exclusivamente da água que a mineradora fornece. Os moradores do assentamento não pagam pela água que chega às residências, apenas 7% das famílias possuem poços artesianos em suas propriedades; o restante dos moradores, não possuem recursos financeiros e apoio das instituições locais, para a perfuração de poços em suas propriedades.

O abastecimento de água para 87,5% dos entrevistados é feito por meio de rede de distribuição que são sistemas de abastecimento de água construídos por tubulações que tem a finalidade de fornecer água potável em quantidade e pressão adequadas. Para outros 10,4% a água chega até as casas por meio de mangueiras e ainda 2,1% utilizam de latas para o transporte. No tocante aos problemas inerentes à rede de distribuição, 39,7% dos entrevistados que a utilizam apontam transtornos como vazamentos, entupimentos e o rompimento dos canos, o que compromete o bom funcionamento do sistema quase diariamente. Os moradores que se utilizam das mangueiras para transportar água também reclamam de furos e vazamentos constantes.

Tundisi et al. (2008) destacam as condições da infraestrutura para a economia de água. O tipo de rede de distribuição e as condições da infraestrutura podem configurar altos níveis de desperdício. Os autores mencionam que no Brasil, de acordo com a Associação Nacional dos Serviços de Saneamento, 49% da água captada para o abastecimento é jogada fora, dentre outros motivos, por perda do próprio sistema de captação e distribuição. No Urucum nota-se que os vazamentos e rompimentos da rede de distribuição mencionados pelos entrevistados acontecem desde a época de criação do assentamento, fato este que também foi evidenciado por Muniz et al. (2003) há mais de dez anos e que, no entanto, persiste até os dias de hoje.

No que se refere ao armazenamento da água os resultados da pesquisa mostraram que é feito em 98,6% dos casos por caixas d’água, e a maioria dos residentes possui reservatórios com capacidade para armazenar apenas 500 litros. No entanto, algumas residências chegam a ter até quatro caixas d’água para manter o consumo familiar e o uso nas atividades produtivas. No assentamento Urucum a atividade produtiva mais desenvolvida (58%) pelos moradores com finalidades de comercialização e consumo familiar é a horticultura. Os moradores ainda desenvolvem atividades com animais e plantio de mandioca, direcionadas ao consumo das famílias.

A interposição das informações a respeito do tamanho das caixas d’ água utilizadas pelos moradores com as atividades produtivas desenvolvidas permite destacar que todas as residências que possuem mais de uma caixa d’água nos lotes estão envolvidas com algum tipo de produção agrícola. Notou-se, ainda, que aqueles que possuem sistema de irrigação dispõem de reservatórios maiores. A Figura 1 mostra o tamanho das caixas d’água utilizadas pelos agricultores que possuem sistema de irrigação.

Figura 1 - Relação entre o tamanho das caixas de água dos
moradores que usam irrigação no Urucum, Corumbá/MS, 2012

Fonte: Dados da pesquisa (2012).

Em se tratando dos sistemas de irrigação, alguns entrevistados afirmaram que, em dias nos quais todos os moradores que possuem irrigação resolvem irrigar suas hortas, os moradores que não praticam nenhum tipo de atividade produtiva se sentem lesados, uma vez que, a partir dos horários em que os agricultores utilizam o sistema, falta água em grande parte das casas. Com isso, nota-se a existência de um conflito interno entre os moradores que trabalham com a horticultura e aqueles que não desenvolvem nenhum tipo de atividade produtiva, já que os últimos sentem-se prejudicados em épocas em que a temperatura é mais elevada e o volume de água parece menor, em contrapartida, os agricultores afirmam que precisam da água para o desenvolvimento de suas atividades, sobretudo a horticultura.

Tendo em vista a quantidade de água fornecida diariamente pela mineradora ao assentamento e a demanda para consumo prioritário e produtivo, utilizando-se de informações fornecidas pela mineradora e pelos dados coletados durante a pesquisa de campo foi possível elaborar uma estimativa de consumo das famílias e oferta de água pela mineradora em m³ (Figura 2). Observa-se que o consumo estimado para o uso doméstico é menor quando comparado à demanda de água para irrigação que, somados, excedem a oferta de água diária firmada em acordo entre os moradores e a mineradora.

Figura 2 - Estimativa de consumo e oferta de água para o Urucum, Corumbá/MS, 2012.

Fonte: Banco de dados da Vale e dados da pesquisa, 2012.

Os entrevistados destacam que os problemas com a quantidade desse recurso têm se intensificado nos últimos anos. Pelas entrevistas, foi possível notar que na visão dos moradores além da demanda para a atividade agrícola as atividades da mineradora trazem também transtornos referentes à quantidade de água ofertada, como fica evidenciado no trecho abaixo.

(...) a questão toda é que a mineradora também precisa da água, quanto mais eles aumentam a produção deles mais eles precisam da água (MORADOR DO URUCUM, 37 anos).

Outro ponto que fez parte da investigação foi a respeito da qualidade da água fornecida, de acordo com 65% dos moradores, a qualidade é ruim. As entrevistas permitiram observar que o minério presente na água faz com que ela necessite de tratamento. Destacam, ainda, que em períodos de chuva, a água costuma chegar barrenta nas casas, fato este que impossibilita sua utilização para variados fins.

A qualidade da água é frisada por Barros (2005), que explica que em muitos casos como, por exemplo, para o abastecimento humano, a condição qualitativa desse recurso é restritiva. Ainda que exista uma grande quantidade de água disponível em determinado território, é necessário que se tenha também qualidade compatível com os diferentes usos. Percebe-se também um aspecto social vinculado à oferta e qualidade da água que se torna em determinadas situações causadora de conflitos, como no caso apresentado. Granziera (2006) denota que, quando não há água em quantidade e qualidade suficiente para todos os interesses e necessidades humanas, ela assume a posição de objeto de conflito, uma vez que alterações de sua qualidade e quantidade resultam em impactos nas atividades, colocado em risco o modo de vida e a própria sobrevivência dos grupos humanos.

A respeito de medidas que poderiam ser tomadas para mudar o quadro atual de escassez da água, os entrevistados acreditam que se houvesse pagamento pelo uso haveria maior conscientização. Contudo, destacam também que quando há pagamento, a qualidade do recurso ofertado tem por obrigação ser melhor. Mencionam ainda a mudança de hábitos com a finalidade de evitar os desperdícios como outra medida a ser adotada.

Um dos entrevistados que esteve presente no processo de implementação do assentamento, afirma que a maneira com que os moradores faziam uso da água contribuiu para atual situação de escassez. Para ele as famílias vindas de Ilha Grande eram acostumadas com uma grande fartura do recurso. Explicou ainda que durante muitos anos os moradores da área fizeram diferentes usos incorretos do recurso, posteriormente, vieram as mineradoras para região, e não demorou muito para a vazão de água começar a reduzir.

Barros (2005) denota que no Brasil, como em outras partes do mundo, existe uma cultura caracterizada pelo desperdício, uma vez que as tarifas de água consideradas com as tarifas cobradas em outras partes do mundo são baixas. Além disso, o fato de nosso país ser privilegiado no tocante à quantidade de água disponível favorece a cultura do desperdício citada pelo autor. No Urucum em um primeiro momento a fartura de água que existia na área pode ter causado a impressão para a população de que o quadro enfrentado hoje de escassez era algo muito distante ou praticamente impossível. As famílias vindas de Ilha Grande vieram de uma realidade caracterizada pela fartura desse recurso e, portanto, mantiveram hábitos de uso indiscriminado da água. Além do mais, como os próprios moradores afirmaram, não existe pagamento pelo uso da água, tudo isso contribuiu para o cenário atual em que poucos moradores demostram uma consciência da necessidade de adquirir hábitos sustentáveis diante do problema enfrentado.

Contudo, o cenário atual de escassez do recurso, acaba por gerar conflitos como visto anteriormente entre os próprios moradores do assentamento e conflitos externos como o relacionamento entre a mineradora e os residentes do assentamento que é marcado pela hostilidade, principalmente por parte daqueles que atribuem às atividades da empresa, a principal causa da falta de água na região. Destaca-se que a mineradora além de ser vista como uma das principais culpadas pela falta desse recurso é também a instituição mais presente na busca de soluções para os problemas dentro do assentamento, ao receber demandas para serviços de infraestrutura no local prestando ainda apoio nas áreas da educação e saúde, contornando as lacunas deixadas pelo poder público.

No que toca a articulação coletiva dos moradores, a Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Urucum criada em 1987, conta com a participação de apenas 37,8% dos moradores do assentamento. De acordo com as entrevistas a associação não possui um histórico de grande envolvimento por parte da população. Um dos entrevistados, que já foi presidente da associação explicou que a instituição já passou por muitos desgastes políticos, experiências e parcerias mal sucedidas com instituições locais. Para o entrevistado, após uma série de divergências com o poder público e empresas que atuam na região, a participação diminuiu ainda mais.

Diante desse quadro caracterizado por diferentes interesses envolvendo o recurso natural em questão, é pertinente retomar  as contribuições de Weber (2007) e Ollagnon (2007) que discutem a respeito da gestão adequada dos recursos naturais. Os autores defendem uma proposta de gestão integradora que oferece a possibilidade de lidar com diferentes papéis e interesses ao se tratar de um recurso natural. De acordo com Theodoro (2013) o Brasil conta com a existência dos Comitês de Bacia hidrográficas regulamentados pela lei (Lei nº 9.433/97) que tem como competência promover o debate das questões relacionadas aos recursos hídricos e articular a atuação das entidades intervenientes, os conflitos relacionados a água, além de aprovar o plano de recursos hídricos da bacia e estabelecer os mecanismos de cobrança.

No assentamento Urucum, não foram mencionadas durante as entrevistas nenhum tipo de envolvimento ou participação da população em algum tipo de comitê ou órgão que estivesse a frente das discussões a respeito dos recursos hídricos da região. Mostrando a falta de articulação frente a situação de degradação do recurso natural. Cabe ressaltar também que por mais que essa participação esteja prevista por lei muitas vezes esbarra em obstáculos como a falta de conhecimento burocrático e de uma intermediação que possa facilitar a negociação de interesses. Muitas vezes, a atuação de um técnico mediador que possa orientar a população sobre as possibilidades de ação e estabelecer o diálogo entre os órgãos competentes, torna esse processo menos burocrático e rígido como na prática parece ser.

Para o caso específico do Urucum, mesmo o problema de falta de água sendo evidenciado há 13 anos pelo trabalho realizado por Muniz et.al.(2003) não foram tomadas nenhum tipo de medidas que incluíssem como mostraram (Mckean e Ostrom) decisões coletivas e manejo dos recursos que estipulassem regras restritivas de uso da água.

6. Considerações Finais

É notável na realidade apresentada a ausência do poder público em fiscalizar, acompanhar e aplicar medidas para resolução dos problemas atuais, além de garantir água de qualidade aos moradores. A literatura mostrou que é indispensável que os órgãos públicos competentes trabalhem junto à população, e outros atores sociais envolvidos no sentido de efetuar uma gestão integradora da água. Esse trabalho procurou evidenciar a realidade dessas famílias para que por meio dela seja possível refletir a respeito de hábitos, gestão e uso de recursos, assim como possíveis alternativas para situações similares como os casos recentes que apontam para uma possível pressão sobre a água. Sua ausência ou condições inadequadas para o uso podem ser consideradas uma ameaça à reprodução do modo de vida, sobretudo em se tratando de comunidades rurais.

Referências

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1. Doutoranda em Extensão Rural do Programa de Pós- Graduação em Extensão Rural pelo Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa, Brasil. Email: policardoso_27@yahoo.com.br

2. Professor Titular do Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa, Brasil.

3. Doutorando em Extensão Rural do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural - PPGExR da Universidade Federal de Santa Maria.


Revista ESPACIOS. ISSN 0798 1015
Vol. 38 (Nº 38) Año 2017

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