ISSN 0798 1015

logo

Vol. 38 (Nº 35) Año 2017. Pág. 19

Acesso à escola e resistência negra: revelações de uma cidade interiorana

Access to school and black resistance: revelations of a city from interior

Nanci Alves da ROSA 1; Carmen Lúcia Fornari DIEZ 2; Mareli Eliane GRAUPE 3

Recibido: 16/04/2017 • Aprobado: 28/04/2017


Conteúdo

1. Introdução e procedimentos metodológicos

2. Análise dos dados

3. Concluções

Referências bibliográficas


RESUMO:

Este artigo foi elaborado a partir de uma pesquisa realizada com pessoas negras de uma cidade interiorana do sul do Brasil, que relataram suas memórias relacionadas à educação. Estas pessoas são antigos moradores e frequentadores de um bairro destinado aos negros desde o século XIX e seus discursos foram aqui reproduzidos com o objetivo de compreender e explicar as relações raciais que os negros lageanos vivenciaram a partir da década de 1920 do século passado.
Palavras chave: Pessoa Negra, Resistência, Educação, História

ABSTRACT:

This article was elaborated from a research done with black people of an interior city of the south of Brazil, who related their memories related to the education. These people are former residents and frequenters of a neighborhood destined for blacks since the nineteenth century and their speeches have been reproduced here with the purpose of understanding and explaining the racial relations that the lagean blacks experienced since the decade of 1920 of the last century.
Key words: Black Person, Resistance, Education, History

PDF

1. Introdução e procedimentos metodológicos

Este artigo foi elaborado a partir de uma pesquisa realizada com pessoas negras de uma cidade interiorana. Estas pessoas, que relataram suas memórias relacionadas à educação, são antigas moradoras e frequentadoras de um bairro que desde o século XIX era destinado aos negros e seus discursos aqui serão reproduzidos com o objetivo de compreender e explicar as relações raciais que eles vivenciaram a partir da década de 1920 do século passado. O projeto de pesquisa foi submetido ao Conselho de Ética em Pesquisa na Plataforma Brasil, sendo aprovado.

Os testemunhos tomaram conhecimento de que o estudo seria divulgado e concordaram que seus nomes constassem nos textos para publicações, conscientes de que participam do registro da história da etnia e da cidade.

Contribuíram com esta pesquisa, trazendo o conteúdo genealógico do grupo étnico em estudo as pessoas aqui denominadas com os seguintes pseudônimos: Silva, 96 anos; Alcântara, 71 anos; Campos, 81 anos; Costa, 71 anos; Medeiros 71 anos; Santos, 81 anos; Oliveira, 71 anos; Ataíde 81 anos; Trindade, 71 anos.

As portas dos lares se abriram para o resgate das lembranças, para pessoas negras falarem a respeito de si mesmas. Cada visita serviu também para fazer jus à memória e ao esforço de antepassados negros e brancos que lutaram pelo fim da escravidão e pela democracia racial. Com muito respeito e compromisso, revelamos, pelas narrativas de vida, a presença negra nos campos serranos. Para Foucault (2012, p. 267):

Pode-se dizer que existe um estranho paradoxo em querer agrupar em uma mesma categoria de saber dominado os conteúdos do conhecimento histórico, meticuloso, erudito, exato e os saberes locais, singulares, esses saberes das pessoas que são saberes sem senso comum e que foram deixados de lado, quando não foram efetiva e explicitamente subordinados. Parece-me que, de fato, foi o acoplamento entre o saber sem vida da erudição e o saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências que deu à crítica dos últimos anos sua força essencial.

O pensador francês chama a atenção para a valorização dos saberes locais, para a importância de se agregar os discursos dos saberes não valorizados, que se tratam, na realidade, de um saber histórico da luta. Assim a genealogia conduziu este estudo, uma vez que:

Delineou-se assim o que se poderia chamar uma genealogia, ou melhor, pesquisas genealógicas múltiplas, ao mesmo tempo redescoberta exata das lutas e memória bruta dos combates. E essa genealogia, do acoplamento do saber erudito e do saber das pessoas, só foi possível e só se pôde tentar realizá-la na condição de que fosse eliminada a tirania dos discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilégios da vanguarda teórica (Foucault, 2012, p. 267).

Procuramos saber com os entrevistados quais são os atributos que provocam a baixa autoestima, ou o sentimento contrário de segurança pessoal quanto à aparência, a cor da pele, nas diferentes etapas da vida, entrevistando-os com algumas questões para todos, mas, principalmente, deixamos e incentivamos que falassem à vontade.

Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome de uma ciência detida por alguns. (Foucault, 2012, p. 268).

Reafirmamos o pensamento foucaultiano, acrescentando que o sufocamento histórico das lutas, aos sentimentos das pessoas negras no sul do Brasil, empobreceu nossa literatura e fortaleceu a hegemonia branca. Importante salientar que a hegemonia se constrói, segundo a perspectiva de Foucault, a partir da microfísica do poder, das redes capilares de poder. Não que o poder não se exerça também no nível vertical e ascendente, claro que se exerce, mas para chegar lá houve toda uma construção, das quais todos participaram, não é uma política criada de repente, por um grande governante que é imposta sobre todo mundo. São as pequenas coisas os olhares, os consentimentos, as omissões, dentre outros, que permitem a edificação de regimes de verdades, a exemplo daqueles que secularmente dissertavam sobre a superioridade do biótipo europeu.

Destarte buscamos compreender como se mostra a identidade negra e quais dramas vividos a respeito da cor e da classe social, na fase de escolarização e profissionalização dos negros locais. Relataremos primeiramente — comparando com os discursos de Foucault o efeito discriminatório na memória destas pessoas utilizando o marcador social da educação. Vejamos a visão que se cria pela recusa ou aceitação de alguém a partir da aparência física.  Daí emerge a questão daquilo que chamamos invisibilidade, pois muitas pessoas preferem fazer de conta que não veem a discriminação racial, a exemplo do que habitualmente se diz da sociedade brasileira, como aquela que não tem problemas e sequelas de racismo.

2. Análise dos dados

Realizamos uma pesquisa de campo objetivando conhecer os discursos das pessoas negras sobre suas experiências escolares, de trabalho e situações vivenciadas de discriminação racial. Um dos entrevistados declarou:

Passei muitas dificuldades, mas não sei o que a gente causa nas pessoas, sabe aquele bichinho que você não conhece, mas não gosta ou aquela coisa do sapo (...). Já te disseram que ele não morde, não é nocivo, mas a gente não quer está perto... é sapo, assim era eu a boca muito grande baixinha pulando de um lado pro outro. Não era branca. O que, que essa redondinha tá querendo? Consegui me formar por teimosia, me formei em 2006 e penso que mundo é esse, isso que nem era um curso de elite como Medicina, era um curso onde as pessoas eram da mesma camada social que eu (Costa, 2015).

Assim se davam as relações de educação e trabalho de Costa e de pessoas descendentes da matriz africana em na pequena cidade a partir de 1.900. Percebe-se a presença forte das marcas da discriminação em suas vidas.

Analisando os depoimentos dos entrevistados com a compreensão do poder na ótica de Foucault, entendemos a eficácia do discurso que desmerece as pessoas negras. Mesmo que elas hoje em dia usufruam das cotas raciais ou avancem no sistema empresarial e capitalista. Em seu comentário, Alcântara nos alerta o quanto é difícil para as pessoas não se seduzirem pelo poder da mídia que veicula regimes de verdades estabelecidos obstando a inserção das pessoas negras no ensino superior, conforme contou Alcântara:

Quando a imprensa chega a criar consciência nas pessoas é um perigo, ela não pode formar ela tem que ser uma despertadora de consciência, porque a consciência é nossa. Se a nossa educação não constrói o conhecimento, não desperta consciência é lamentável. No Brasil não era pra nós termos cota, era para nós termos uma educação na escola pública de qualidade, a ponto que eu pudesse optar em estudar na UFRGS ou em qualquer universidade particular (Alcantara, 2015).

De modo geral os depoentes corroboraram que a educação é um fator de afirmação para as pessoas negras.

Com os depoimentos deste grupo de pessoas negras naturais da Princesa da Serra [4], pudemos analisar suas lembranças com uma perspectiva histórica, porque relembram espaços arquitetônicos, autoridades, famílias tradicionais. O cotidiano de uma cidade interiorana e as relações entre negros e brancos com a crítica aguçada no sentido de discutir de que maneira as pessoas negras foram assujeitadas e disciplinarizadas.

Mais do que uma descrição dos fatos, com o relato da história oral nos aproximamos de situações de resiliência, de coragem, ouvimos de que forma cada um atravessou ou não as etapas escolares, seus ofícios, diversões, se recebiam ou não provocações racistas. Reconhecemos pelas histórias contadas, o esforço destes negros e negras, sujeitos que tiveram muita influencia no seu meio familiar e participaram do desenvolvimento da sociedade local.

Também desejamos compreender como as pessoas negras resolvem emocionalmente a sensação de perceber que causam desconforto todo dia ao se aproximarem do outro, do branco, independente se é estudante ou professor negro. Uma criança negra, por exemplo, enquanto está sob atendimento e convivência exclusiva da família tem tratamento natural e sente-se integrante, sua aparência é semelhante. Quando passa a se socializar com outras pessoas no ambiente escolar, começa a sentir o impacto e o poder da discriminação ou da indiferença, pois a semelhança desaparece e dá lugar ao estranhamento, ao contraste de aparências.

No capítulo II do livro Saberes Pedagógicos. Educação em Direitos Humanos e a formação de professores seus autores abordam a necessidade de toda a sociedade olhar com o devido respeito às diferentes culturas e etnias que compõe nossa época. No entender dos autores conforme a citação abaixo, a função dos documentos criados pelo governo para implementar a Lei 11. 635/08 — tratam da formação de professores, materiais didáticos, livros de contos africanos que podem ser usados para as diferentes faixas etárias e abrangem todo o universo escolar.

As sugestões funcionam como recomendações e mostram que a articulação entre educação, relações raciais e Educação em Direitos Humanos implica vários investimentos. Também apontam para a escola como um território sensível em que ideias, comportamentos e imagens racistas se atualizam, se retroalimentam, mas que podem ser trabalhadas e reconstruídas. (Andrade, Lucinda, Sacavino, Candau & Amorim, 2013. p. 134)

As consequências de vivenciar o preconceito e a discriminação durante toda uma vida, diferenciam o jeito de ser e as escolhas profissionais das pessoas negras. Elas geralmente aparecem em número reduzido na classe, ou série escolar, acontecendo a chamada solidão étnica, “A minha sobrinha . . . filha da . . . estudou no Colégio das irmãs – uma escola particular elitista – a única preta da época dela a estuda lá” (Ataide, 2015); Passados mais de 20 anos e a situação é parecida, juntando as quatro escolas particulares, o número de alunos negros é diminuto, ou seja, tais instituições são ainda espaços embranquecidos.

Na época em que nossos entrevistados frequentaram as primeiras etapas escolares, eles relatam que percebiam o tratamento diferenciado que professores destinavam aos negros. Então assim, eu tava com varicela, só eu negro na sala e ai dormindo numa aula de catequese dessas assim, ela disse: “olha ai tá com o diabo no couro, estamos falando em Jesus, e ele dormindo”. Dai fui pra casa fiquei 15 dias em casa com varicela e ameaça de pneumonia. Quando voltei, voltei todo manchado de varicela, então, pra criança negra o colégio é terrível. Porque assim. Tu tinha vergonha de perguntar por que tu tava mal vestido . . . aquilo e nós íamos pro colégio com uma tamanquinha no frio ou uma chinela de couro feita no Gurgel Camargo. Negro, mal vestido e pobre num colégio só de branco. (Alcantara, 2015).

Essa narrativa nos faz pensar que a falta de recursos e a construção de uma baixa autoestima dos estudantes negros, somadas à pouca sensibilidade e amorosidade de certos profissionais da educação, transformam o cotidiano escolar das crianças negras, num drama marcante para toda a vida. Na infância dos entrevistados a situação de pobreza era mais forte, a acessibilidade aos bens de consumo, muito mais restrita. Se há o discurso de que no pós-abolição usar calçado foi uma conquista para as pessoas negras, na década de 50, na cidade, ainda era raro ver crianças negras com os pés protegidos.

Nasci atrás do morro grande, só não sei que horas que eu nasci, né, quando meu pai morreu em 1923 eu tinha quatro anos, então quer dizer eu era o mais novo, eram oito irmãos, cinco homens e três mulheres. A escola era ali onde era o GD, chamavam o Coleginho São José, até o quarto ano.  Eu aprendi a matemática assim, era bom estudar. Eu sai lá do morro grande e vinha com o pezinho no chão e o calçadinho na mão pra calçar quando chegasse na escola. (Silva, 2015).

Apenas os forros, ou seja, negros que possuíam a carta de alforria, podiam andar calçados pelas ruas do Brasil colonial. Ter calçados era sinônimo de status social.

Olha, eu lembro muito da professora mais velha, era a dona Amália, as outras não tenho mais lembrança do nome. Naqueles tempos, tinha um padre que chamava... era brabo.  A gente fazia um pouquinho de arte eles puxavam um cordão e batiam na gente, quando brigava né, as vezes discutia um guri com o outro daí eles tinham raiva e vinham com aquele cordão pra bater na gente. (Silva, 2015).

Os métodos educacionais rigorosos e as dificuldades financeiras deixaram marcas na vida dos entrevistados, as informações relatadas nos impulsionaram a refletir sobre racismo, classe social e preconceito em sala de aula.

Eu na escola fui bem inteligente, só não continuei porque a gente era muito pobre naquela época, até agora né, mais eu fui bem inteligente só não pude frequentar mais a escola devido `a pobreza. Fiz até o quarto ano. Para ser antigamente, eu estudei muito. Eu estudei ali no Coleginho São José que nem existe mais, era na frente do hotel do lado Correio (...) A dona Carmosina ela era pessoa muito boa marcou, porque graças a Deus pra burro eu não servia, as próprias professora diziam que era uma pena eu não poder frequentar a escola por não ter condição. Naquele tempo parei por que não tinha. Do quarto ano em diante era só pra rico, era tudo pago, tinha que pagar e eu não tinha condição (Campos, 2015). 

O estudo gratuito beneficiava somente até o quarto ano, assim os mais empobrecidos partiam para o trabalho ainda crianças e sobre estudar descalço e a condição econômica dos negros lageanos, na década de 50, Campos diz — “. . . eu não usava sapato ia descalço pra escola, não tinha né. A pobreza pegou ali e não largou mais, mais depois não, nós começamos a crescer e a trabalhar, ai veio o sapato e a roupa” (Campos, 2015).

Em documentos de uma antiga instituição escolar da cidade, Escola de Educação Básica (1912), encontramos guardados no seu acervo as atas de reunião da Escola de Educação Belizária Rodrigues (hoje extinta) o registro da secretária ocorrido dia 10 de novembro de 1956 que representa o entendimento dos professores naquela época sobre os alunos carentes, diz o documento:

Queixam-se os professores dos próprios alunos, pois são bem poucos os professores que têm na sua classe alunos, que dentro de uma família acomodada e boa sem miséria, que vão à escola levados pelo afã de aperfeiçoarem-se. Na maioria, nossos alunos vêm de camada social bastante inferior, composta de crianças entregues a si mesmas, sem assistência dos pais, crianças fatigadas pelo trabalho remunerado, crianças pouco assíduas, cujos pais são inimigos do professor e que só se lembram de procurá-lo para reclamar ou tirar satisfações, protestando quando seu filho não apresenta o progresso desejado. (ESCOLA DE EDUCAÇÃO BÁSICA . . ., 1912, (s.p,)).

O relato é da secretária na ata de reunião, foi feito com apontamentos clássicos e elaborados para perfeita uniformização da escrituração de livros de Registro Escolar daquela época. Observamos, porém que a família do estudante era desconhecida pelos professores, talvez mesmo os pais ou mães, dedicados não se sentissem à vontade para dialogar com a escola. Para os professores o fracasso escolar, a falta de esmero, naquele contexto teria sido justificada pela pobreza que levava ao trabalho infantil e ao distanciamento entre pais e escola. Naquela época, não se declarava a importância de um envolvimento mais amplo entre família, currículo, professor e alunos. Um atendimento que fizesse os estudantes sentirem-se identificados com os conteúdos, situação presente ainda nos dias atuais em muitos espaços escolares.

Eu era piá né, tinha uns 14 anos. Mas olha pra fazê uma matemática eu era coisa de louco, no meu trabalho, metrage, isso aí eu não perdi. Só com pintura, calculava tudo com uma facilidade que nossa, mas não deu mais né tive que trabalhar, pobreza é coisa triste (Campos, 2015).

Mesmo com pouco tempo de escolarização e de aprendizado muitos negros lageanos vieram a destacar-se em trabalhos na construção civil. Com oitenta e um anos de idade João Campos, seu Jango como é conhecido, lamenta o afastamento que teve da escola para poder trabalhar quando jovem e reconhece o potencial intelectual que lhe serviu na profissão de pintor de paredes. Em entrevista posterior, Seu Jango é citado como exemplo de perseverança, dedicação e empreendedorismo.

. . . os pintores eram da família Bruder, eram os pintores [da cidade], ai a família Campos, o seu Jango, começaram carregando lata de tinta na rua para eles pintarem. O Jango Campos, o Leonidas Campos, o Lauro Campos e depois tinha o Aniceto que já trabalhava com outra profissão e o Carlos Campos era de marcenaria e carpintaria, né. Esses três irmãos seguiram esse caminho da pintura, eles eram empregado ali, depois eles se transformaram em donos da empresa deles (Alcantara, 2015).

Hoje a democratização do ensino aos jovens, oferece mais oportunidades para ascensão profissional. Face a isto os jovens negros podem se favorecer das políticas públicas e educacionais direcionadas para esta etnia e para os indígenas, podem usufruir de ações que objetivam a superação da pobreza.

Qualquer disciplina, pode ser trabalhada usando temas que envolvam as diferentes etnias e culturas com equidade, assim o estudante irá talvez se identificar com algum exemplo e ao conhecer profundamente suas raízes se sentirá motivado em descobrir sua participação real na construção do presente e futuro histórico e social do seu destino.

Conforme explica a declaração da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) sobre a Raça e os Preconceitos Raciais, na primeira parte do Artigo 9º:

O princípio da igualdade em dignidade e direitos de todos os seres humanos e todos os povos, independentemente da respectiva raça, cor e origem, constitui um princípio de direito internacional geralmente aceito e reconhecido. Por conseguinte, qualquer forma de discriminação racial praticada pelo Estado constitui uma violação do direito internacional que dá origem a responsabilidade internacional (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [UNESCO], 2015).

Os seres humanos são diferentes, na cor, gênero, classe, mas iguais enquanto criaturas humanas. Para ajudar no entendimento do que é ser diferente e igual ao mesmo tempo, apresentamos neste subcapítulo os desafios que discursos hegemônicos permeados, inclusive na documentação de pobres e negros para reconhecimento de sua cidadania.

Em 1958 a gente foi pro Coleginho São José, que era colégio de padre, aonde é hoje o Shopping Gemini, até então eu não tinha certidão de nascimento, eu me assinava Rogerio Alcantara que era o apelido que meu pai tinha, meu pai era Pedro Jeronimo. Mas como ele era um homem grande eles associavam um homem grande com D. Pedro I de Alcantara, então apelidaram ele de Pedro de Alcantara, Pedro Grande, aquele negocio tudo, então tem irmãos meus que tem na certidão de nascimento como Alcantara, eu por muito tempo fui Alcantara depois que ela trocou por Jeronimo Medeiros. A minha mãe tinha uma capacidade muito grande de convencimento das pessoas, ela era analfabeta, mas ela ia lá e conseguiu me colocar na escola sem certidão de nascimento eu e meu irmão (Medeiros, 2015).

Após verificar a fragilidade da documentação de identidade, como nome da pessoa era criado a partir de características, localização ou personagens, lembramos que na África ¾ desde os primórdios ¾ o nome é importantíssimo, havendo uma escolha para nominar a criança feita em grupo com rituais sagrados. (Ki-zerbo, 2002)

Sendo mais restrita a inserção de alunos de pele mais escura nas escolas da cidade, ficamos cientes que os ofícios acompanharam a vida dos mais antigos moradores negros deste lugar, foram de carpinteiros e pintores de parede. Aqueles que tiveram acesso a mais tempo de estudo, concluíram seus cursos e saíram diplomados.

Minha mãe foi e disse, olha: eu queria que os meus filhos estudassem aqui, só que eu não posso pagar Frei Capistrano, Frei Humberto e tal. Eles falaram o seguinte: a senhora vai lá na delegacia e pega um atestado de miserabilidade, que seus filhos vão estudar aqui. Já existia Lei e ninguém sabia, até isso minha mãe conseguiu. E eu fui pra lá e fizemos o chamado ginásio Diocesano, sem pagar. Primeiro a gente fez admissão depois a gente foi pra noite, né (Medeiros, 2015).

A personalidade forte e a iniciativa desta mãe negra, permitiu aos seus filhos uma criação humilde, porém repleta de senso crítico. Chama atenção nosso entrevistado, que naquela época já havia leis de proteção para o direito de estudar a qualquer brasileiro. Também nos contava ele, que estudar podia significar apenas aprender a assinar o nome de batismo.

Foi assim, as fazendas eram muito grandes e tinha lá uma quantidade de peão lá e os coronéis chegavam e diziam assim; vocês vão vota em fulano. Quando passava uma professora por lá era só pra ensina a assina o nome pra pessoa ter a condição de votar. Eles não eram alfabetizados eles só sabiam escrever o nome, então a coisa era assim (Medeiros, 2015).

Ainda quanto à oferta de estudo há sessenta anos, para muitas pessoas pobres e/ou negras, vimos que fazendeiros e patrões da Serra Catarinense, oportunizavam alguém que ensinasse aos agregados, apenas assinar o nome, para depois votar. Mais grave ainda, a educação da década de 50 aprovava metodologias tradicionais, inclusive castigos corporais (Vicenzi, 2015). Especialmente em um estabelecimento que se dedicava a ensinar meninas pobres, o Colégio Imaculada Conceição, que era mantido por religiosas. A mesma congregação possuía outro colégio, no qual estudavam meninas e moças da elite lageana. Após um século da fundação da cidade a divisão e a hierarquia social entre as pessoas era muito presente — para termos ideia das relações de poder no ambiente escolar do passado desta cidade, observaremos os três depoimentos a seguir:

Até o quarto ano tinha a irmã Rahigalda, era uma freira muito braba, a gente chegava não sabia as coisas ela dava reguada na mão, na cabeça, naquela época não ensinava nada da África e era em qualquer criança que elas batiam independente da cor, a gente tinha muito medo dela (Oliveira, 2015).

A autoridade da freira instrutora ficou gravada na memória das entrevistadas pelos gestos de violência aplicados. Não que um fato deste seja exclusivo do local pesquisado, mas talvez gesto comum no contexto de escolas antigas, especialmente para pessoas carentes.

O Colégio Imaculada Conceição era ali onde é o ginásio de esporte do Santa Rosa, conheci a Irma Rahigalda que era pá, pá, na mão de régua, ali que eu estudei, foi um horror porque eu tinha que ficar longe da minha mãe e meu pai tinha morrido. Quando meu pai era vivo ele vinha de mês a mês trazer dinheiro pra minha irmã mais velha, compra sapato e eu não, ficava ali até terminar o sapato, não tinha o papai que fazia isso, mamãe ficou com dificuldade, sem salario porque naquela época não tinha pensão ela ficou vivendo do que papai deixou e fazia queijo (Costa, 2015).

Não foi preciso indagar sobre esta personagem agressiva do período escolar, naturalmente as entrevistadas relembravam de momentos tristes na infância e relacionavam a falta de recursos e a apreensão resultante do medo causado pela presença desta freira nas lembranças que tinham.

A senhora vê o meu pai botou nós na escola do coleginho da irmã Rahigalda nós tinha que ir cedo na aula e depois vim na vó almoça, nos comprava um pãozinho estrela e repartia pra depois voltava pra aula e a Irmã Rahigalda era muito braba ela tinha uma régua grande e pá nos alunos. Uma vez ela trancou um piá no porão de castigo no grão de milho, senão ela metia aquela régua. Uma vez eu até chorei sem ser comigo, toda a vida tive dó dos outros, não é que uma cobra mordeu a criança do castigo (Santos, 2015).

Os primeiros anos escolares são definitivos para o entendimento e raciocínio humano, imaginamos como foi difícil para as pessoas citadas acima superarem as adversidades vividas no período escolar. Como elas conseguiram sonhar e idealizar um futuro melhor para si e sua família. “Das minhas professoras não tenho recordação, naquele tempo ele é ele, você é você” (Trindade, 2015). Existem vários casos de passagem pela escola, sem aproximações mediadas pelo professor que envolvam os estudantes com aprofundamento na diversidade cultural do planeta, do país, quiçá da região, minimizando possibilidades de construção de parcerias amigáveis entre aluno e professor para o aprendizado.

Vamos analisar com a citação seguinte a disposição das carteiras que comumente sentavam negros nas escolas locais da década de 50 (Peixer, 2002). Será que essa situação se modificou? Geralmente nas apresentações artísticas escolares, negros são figurantes, são dispostos no fundo do palco, nos corredores da escola os murais e cartazes, antes da Lei 10.639/03 não traziam figuras de pessoas negras, ao observar estes detalhes concordamos que a invisibilidade da pessoa negra ficava explicita. Com exceção de demonstrações do Samba ou Funk geralmente estudantes negros são pouco solicitados e os livros didáticos, tem sido reformulados apenas para se adequarem à Lei.

O grande problema negro: ficava acanhado e sentava lá atrás que é um grande pecado a pessoa sentar lá atrás na sala de aula, porque ali na frente sentam aqueles cara que tão olhando no olho do professor, questionando o professor, o professor fica com medo, aqueles cara que tão vendo dentro dos olhos dele. E aqueles cara que tão lá no meio, lá atrás, o professor não. Ele dá aula pra aqueles cara que tão ali perguntam, questionam, complicam, o professor tem que tá afiado pra responder pra aqueles ali, uns do meio, mas os de traz é balela (Alcantara, 2015).

Quando a pessoa não se sente segura ou à vontade, ela prefere isolar-se, ficar camuflada para não chamar a atenção. Ou seja, os parâmetros educacionais vigentes precisam despertar a autonomia e participação de todos, inclusive ressignificando a presença do negro na história. Lembramos da importância do uso de exemplos de pessoas negras nos campos artísticos, político, da biografia de pessoas negras como identificações de profissionais “gabaritados”. Atitude diferente da visão colonialista que supunha os negros sempre como ignorantes, subalternos e indolentes.

Para melhor entender as formas de tratamento direcionada para as pessoas negras, recorremos a Foucault (2012), ele entendia que para o domínio de um grupo a disciplinarização do corpo seria estratégica. A fila, a forma como um ambiente institucional é pensado, possui separações daquele que lidera, dos destaques e do restante que observa, “. . . numa sociedade como a do século XVII, o corpo do rei não era metáfora, mas uma realidade política: sua presença física era necessária ao funcionamento da monarquia”. (Foucault, 2012, p. 234).

A partir dessa premissa entendemos que no século XIX o corpo da sociedade é o novo princípio filosófico de procurar entender a evolução da humanidade. Esse corpo deveria ser protegido ou afastado, seriam selecionados aqueles ditos saudáveis dos outros vistos como contagiosos, delinquentes, fora dos padrões greco-romanos.

Abre-se espaço para a eugenia, criminologia e a medicina decidirem quem ocupará determinadas instituições, do presídio até as universidades. Ainda Foucault (2012, p. 235),

. . . eu acho que o grande fantasma é a ideia de um corpo social constituído pela universalidade das vontades. Ora, não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos.

Tudo isso somado aos castigos corporais, representa para a história dos negros uma batalha em defesa da locomoção do corpo, da exposição e proteção da corporeidade.

Na expectativa de protagonismo dos excluídos, da presença de corpos negros nos espaços de decisão e poder, de uma alfabetização com consciência crítica e direitos iguais para todos, recorremos a Paulo Freire, ele salienta, “Alfabetizar-se não é aprender a repetir palavras, mas a dizer a sua palavra, criadora de cultura (Freire, 1987, p.18). Para erradicar histórias de opressão, exploração e violência na educação, é que a obra de Paulo Freire (1996) se direciona. É válido lembrar que Paulo Freire usava como referência a obra de Frantz Fanon (2008), por sua teoria quanto ao complexo de inferioridade do negro como resultado da opressão branca. 

O aprendizado para Freire e para Fanon é emancipador, libertador da ignorância e da submissão dos homens e mulheres negros que foram inferiorizados por conta da teoria do embranquecimento. Entre outros fatores, os negros foram alicerce de muitos conhecimentos e mão de obra para a modernização da região serrana de Santa Catarina. Ainda crianças essas pessoas eram exploradas nos serviços domésticos e quanto ao estudo foram deixadas a própria sorte.

Então eu fui pra lá, pra cuidar do nenê pra ela com seis anos de idade. Mas ela não de me deu aula, a primeira professora que eu tive foi a dona Julieta depois eu não fui mais, eu tive no Imaculada Conceição quando eu tava com a minha mãe, depois com a dona Julieta era ali perto do Correio, pra cima, era uma escola a noite, era de graça e eu já era grandinha tinha uns doze anos. Estudei ali no Vidal Ramos também a noite dai, mas era só umas duas três semana, dai eu tinha muita dor de dente e tinha que lava louça pra depois ir pra aula essa começava a 1 hora eu chegava lá já tinha terminado, ela dizia assim - mas o que que adiantou você vir a essa hora, naquele tempo não era tarefa, era deveres, você leva os deveres e faz em casa. Eu pra estudar a tabuada tinha que colocar o caderno pra cima da pia enquanto lavava louça, pra pode estudar e pra depois dizer no outro dia. Ai a dona Emília Araujo, essa senhora que eu tava lhe falando, ela me dava um caderno e um lápis só, e eu tinha que trazer aquilo ali em dia sem estraga, eu tinha muita dor de dente, . . . (Santos, 2015).

Na declaração acima, temos o retrato de uma época, famílias patriarcais, entre abastadas e “remediadas” tinham domésticas que moravam desde crianças, mas não eram adotadas e nem remuneradas. No caso acima, a menina negra não teve a atenção de saúde odontológica e nem educacional suficiente. Em suma, o pequeno grupo entrevistado retrata as dificuldades que as pessoas negras e pobres enfrentavam para poder estudar. Talvez nem percebessem naquela época a segregação que os afastava do direito à educação.

Cinco dos nove entrevistados chegaram até o final do Ensino Básico e quatro conquistaram diploma superior. No próximo depoimento reconhecemos o enaltecimento que a sociedade serrana dedicava ao templo cristão, as denúncias vividas no ambiente escolar e a coragem fortalecida por uma professora na vida da criança negra.

Domingo na missa da Catedral, por exemplo, se nós fosse com o uniforme da semana na missa e molhasse o uniforme não tinha como ir na aula na segunda-feira, então minha mãe colocava uma capa, uma capinha de chuva assim nas costas e nos íamos de calça curta e pés descalço pra ir na missa, por que tinha que marcar presença na igreja. A gente se administrava muito bem isso ai, a gente sabia o lugar da gente só que a discriminação era muito grande. A gente não podia falar com as pessoas, na aula só ouvia, a gente notava que os professores dava uma atenção maior para o filhinho de papai do que pra gente. Tinha lá um ou outro professor como a Danusia que foi minha professora. A Danusia tinha um tratamento especial com a gente, pergunta pra ela do Rogerio Geronimo. A Danusia foi fantástica, ela foi uma pessoa muito especial na minha vida, muito especial. Ela nunca perdeu a gente de vista, ainda hoje onde ela vê a gente ela faz uma festa, no terceiro ano ela foi minha professora, eu com nove anos e ela uma menina muito nova, eu me lembro, uma pessoa muito bonita ela era (Medeiros, 2015).

Pelas entrevistas concedidas, notamos que a memória revela lembranças marcadas de sentimentos, ora de angústia, ora de alegria. Para o bem do ensino local a professora lembrada pelo seu Rogerio Medeiros, continua firme, hoje atuante na formação universitária de centena de serranos, sendo reconhecida na cidade por sua trajetória profissional. Com as narrativas apresentadas foi possível constatar que a dificuldade financeira e a distância geográfica, eram o empecilho para o desejo de frequentar a escola. Observamos também, que a atuação do professor embasado no respeito às relações raciais, impede a vitória e expansão do preconceito e reforça a autoestima da pessoa negra, conforme o seguinte depoimento:

. . . mas tem uma professora minha aqui de . . . que eu nunca esqueço o nome dela: professora Inalva Maria Rafaelli, essa professora eu tinha vontade de encontrar ela, um dia eu fui pro quadro fazer uma expressão daquela de travessão e matemática, eu nunca me esqueço aquilo. E eu tava com as calça bem limpinha assim mas tava remendada no joelho e de chinelo, e uma guria loira do olhos azul começou a rir, ela mandou eu parar mas ela deu uma queimada nessa guria que foi coisa seria (Alcantara, 2015).

Quando o estudante negro ganha apoio por suas origens e valor, fortalece-se emocionalmente, assumindo muitas vezes condições de liderança e criatividade nas atividades escolares e na vida. Situação necessária, pois geralmente este estudante é visto como um indivíduo desacreditado de suas potencialidades intelectuais. Na sabedoria de Seu Jaci, “. . . os negros são assim; aqueles que têm oportunidade crescem” (Alcantara, 2015).

Esse Silvio Ramos trouxe meu irmão para . . ., dai colocou ele aqui até o quarto ano primário com a professora famosa a Professora Aída Shimidt, professora vip, pegava só três, quatro alunos, e ele então trabalhava na casa dos patrões e um período ele ia pra casa dessa dona Aida Shimdit. E ele então ia busca vaca de madrugada, levava pra tira leite, vinha pra Aida Shimidt. Dai quando chegou numa idade ali, o quarto ano ali, o patrão dele falou: tá muito caro a escola pra você, parece ele pagava 40 mil reis por mês, eu vou troca isso pra você vou coloca você no serviço. Dai colocou ele na Internacional, ele trabalhava na casa e na Internacional que era uma oficina mecânica em . . . (Medeiros, 2015).

No relato acima, conhecemos a história de um menino negro que teve amparo e estudo na sua criação, quando adulto destacou-se como militar, auxiliando significativamente o restante da família. Nossos entrevistados valorizam seus ancestrais e repassam a preocupação do exemplo positivo e resiliência dos negros ser disseminado entre os mais jovens.

Usaram a inteligência deles, seu Jango mostrou um caminho para os filhos, formou os filhos tudo a partir dali seu Leonidas tudo. Hoje em dia tá cheio de doutor negro economista negro, advogados negros, mas esses negros que tão hoje ai, não sabem o que foi o inicio dos pais deles (Alcantara, 2015).

Em busca de documentos sobre a presença negra na educação do município, visitamos a escola mais antiga ainda em funcionamento, a Escola de Educação Básica [...], construída em 1912, oferecendo ensino das séries iniciais ao oitavo ano. Foi a primeira escola pública da cidade. Antes dela, a instituição escolar que atendia as crianças pobres era o Colégio São José, só para meninos e no Colégio Imaculada Conceição para as meninas, ambos gratuitos até o quarto ano (séries iniciais) e mantidos por congregações religiosas. Ao buscar no acervo da Escola . . . tivemos acesso aos diários de classe a partir de 1961 e nestes percebemos que nada consta quanto à preocupação em destacar a cor ou etnia do aluno.

O que se encontra é a divisão de gêneros na lista dos diários, ou seja, primeiro a relação de nomes masculinos e em seguida a relação de nomes femininos, quanto à classificação documental relativa à distinção racial nada encontramos. Dessa forma, não foi possível saber quantos e quem seriam os negros que integravam a lista de alunos daquele educandário.

Hoje é diferente, muitas instituições de ensino cadastram no ato da matrícula a informação etnia, dado este, que ajuda no retrato da escola brasileira. A educação atual visa refletir sobre as problemáticas e perspectivas que discutam e venham senão solucionar, pelo menos reduzir os problemas de relações étnicas e racismo na escola. Contrapondo felizmente com o pensamento do século XIX, onde havia um ensino tradicional de herança colonial que reprimia e excluía o segmento negro da democratização escolar.

O serviço de dentro de casa, mal pude estuda, tinha uma professora chamava-se dona Ana, era uma escola ali perto do Correio, quando a gente vinha do sitio eu frequentava as aula ali, era um coleginho, a dona Ana morava na Brusque, era solteirona, era uma pessoa muito boa, me lembro que era Ana mas não lembro o sobrenome. Funcionava à noite, ali fui aprendendo um pouquinho (Ataide, 2015).

Havia professores que trabalhavam em casa, ficamos sabendo da existência e da atuação do professor negro João Bento, que também dava aulas particulares. Segundo depoimento da filha dele – o Sr. João Bento foi estudante seminarista da Igreja Católica, era lageano e começou a dar aulas em Vacaria no Rio Grande do Sul. Em 07 de janeiro de 1922 foi nomeado no Magistério Catarinense, lecionou no distrito de Capão Alto até 1931, posteriormente nas cidades de Anita Garibaldi até 1936 e Campo Belo do Sul até se aposentar em 1947.

A filha Bernadete, uma professora aposentada, contou-nos que o pai dizia que por ser moreno algumas escolas achavam que ele não era suficiente, por este motivo deixou a cidade de Vacaria e retornou para a cidade, vindo morar no Bairro dos negros. Na sua residência recebia meninos para instrução, tanto crianças carentes como filhos de classe elitizada, que precisassem de auxílio para a prova de admissão.

O Professor João Bento da Silva (1892 - 1980), constituiu família, na década de 30, morava no bairro da Brusque e dava aula particular em sua residência para as pessoas que iriam fazer teste de admissão nos colégios particulares. Foi um pai exigente, tendo influenciado as quatro filhas a seguirem a carreira do Magistério, inclusive falava que podia morrer descansado porque as filhas eram professoras e três dos filhos, Tipógrafos.

Viveu até os 89 anos sendo referencia como pessoa negra na cidade, apto para instruir crianças e jovens na disciplina de História e Geografia, era conselheiro de algumas famílias e admirado pela comunidade afro-brasileira. Aposentou-se como professor estadual e depois de reconhecida suas potencialidades — foi professor no Colégio Franciscano Diocesano. Católico fervoroso ele pertenceu à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Catedral, sendo provedor da mesma entidade por um ano. Exemplar chefe de família deixou uma árvore genealógica, composta por dez filhos, cinquenta e um netos, setenta bisnetos, dois tataranetos. Fonte: Jornal Correio Lageano, de 18 de julho de 1980.

Nesta retrospectiva do ensino para e por negros no município, novamente citamos a existência da primeira escola pública (Colégio Rosa), local onde os filhos dos ricos e dos pobres tiveram acesso a uma educação de qualidade e integração social. No discurso de inauguração, em 1912, o governador Coronel Ramos anunciou: “Se estas paredes receberam o ouro dos ricos, também foram erguidas com o suor dos pobres”.

. . . fui trabalha com 16 anos e meus amigos que fomos criados tudo junto, tinha as mãe de leite. Lotamos um caminhão que saiu ali do Barulhão, um barzinho no centro, saiu dois caminhões lotados pra construir ponte na BR 116. Era num lugar que só tinha mato e maquina trabalhando, era muito difícil e a proposta que nos fizeram não cumpriram, trabalhamos por quinze dias e voltamos por Curitiba sem nada. Fui engraxate, trabalhei vendendo madeira pra fogo, que sobrava do Batistella, vendi pão, carreguei cesta no mercado (Trindade, 2015).

Vemos novamente as dificuldades financeiras traçando o destino dos jovens negros lageanos na década de 20, as atividades que aparecem na citação acima eram comuns. Serviam tanto para ocupar o tempo das crianças quanto ajudar nas despesas da casa. Havia muita união entre estas pessoas, vizinhos de bairro, principalmente para arrumar trabalho, que servia para afastar a miséria e consequentemente criava uma identidade étnica.

O próprio Valdomiro, pai dos rapazes, dos Medeiros ali seu vizinho, esses guri foram menor aprendiz do Batalhão, muitos deles que começavam de menor lá eles chamavam de “pinante” depois, eles trabalhavam lá fazendo fogo, carregando água pra coloca nas maquina, depois começavam a aprender a operar a maquina, desde muito cedo. Muitas famílias foram salvas por esse sistema (Medeiros, 2015).

Educação e trabalho caminham juntos, a palavra pinante foi uma surpresa entre outras reveladas na pesquisa.  Acusamos a importância do Batalhão para os meninos negros, pois para ser pinante, tinha que frequentar a escola, assim o aprendizado era duplo e famílias inteiras tiveram um futuro melhor. Apesar de serem raros os negros frequentando o espaço escolar, as mudanças vieram com a modernidade e hoje a democratização do estudo, incentiva a inserção deste grupo étnico nos espaços educacionais, resta-nos criar a cultura da permanência e continuidade destes.

 

3. Concluções

Neste estudo constatamos que pela necessidade financeira o trabalho era colocado na frente do estudo para negros e pobres, então, o dilema da exaustão para os adolescentes que frequentavam a escola era dramático, considerando a declaração acima. O espaço escolar marcou de forma dolorosa a vida dos antigos moradores pobres e negros desta cidade, tais quais vários outros afro-brasileiros. Não é novidade que o trabalho infantil já interrompeu o processo de estudo de muitas crianças, mas deve-se considerar que a falta de preparo do corpo docente para incentivar estas pessoas na possibilidade de fazer as duas coisas trabalhar e estudar foi também providencial. Provavelmente gesto do professor para o menino não devia ser diário, porém significou para o estudante um amparo momentâneo que o manteve estudando até o fim do ano e marcou na sua memória.

Na direção de uma escola democrática e o aumento/permanência de jovens negros no ensino superior, torna-se imprescindível à receptividade para novas visões de mundo, mais respeito para a diversidade étnica, almejando assim à conscientização, transformação e atualização constante de toda a comunidade, estudantes, da gestão escolar e dos professores. O universo escolar precisa aproximar-se cada vez mais das famílias e vice-versa, conhecer a origem do estudante, trazer para dentro das salas os mais velhos e seus causos, receitas e outros saberes. Valorizar o modo de ser de cada aluno poderá ajudar nesta tarefa.

 

Referências bibliográficas

Cashmore, E. (2000). Dicionário de relações étnicas e raciais.

São Paulo: Selo Negro.

Paulo, I. A., Andrade, M., Lucinda, M. da C., Sacavino, S. B., Candau, V. M., & Amorin, V. (2013). Saberes Pedagógicos. Educação em Direitos Humanos e formação de professores. São Paulo: Ed. Cortez.

Bento (1980, 18 de Julho). Lages: Jornal Correio Lageano.

Escola de Educação Belizária Rodrigues (1912). Ata de Reunião. In Escola de Educação Básica Vidal Ramos.

Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA.

Foucault, M. (2012). Microfísica do poder (25ª ed.). São Paulo: Edições Graal.

Freire, P. (1996). Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra.

KI-Zerbo, J. (2002). História da África Negra I. Portugal: Publicações Europa-América.

Pedro, J. M., Czesnat, L. de O., Falcão, L. F., Silva, O. L., Cardoso, P. F. de J. & Cherem, R. M. (1998). Negro em terra de branco; escravidão e preconceito em Santa Catarina no século XIX. Porto Alegre: Mercado Aberto.

Peixer, Z. I. (2002). A cidade e seus tempos: o processo de constituição do espaço urbano em Lages. Lages: Editora Uniplac.

UNESCO (2015). Declaração Sobre Raça e os Preconceitos Raciais. Recuperado de http://direitoshumanos.gddc.pt/3_2/IIIPAG3_2_9.htm

UNESCO (2015). Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Recuperado de http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf

Vicenzi, R. (2015). Nos campos de cima da serra: ser preto, pardo e branco na vila de Lages (Tese de Doutoramento). UNISINOS, São Leopoldo.


1. Mestre em Educação pela Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC). Professora na Rede Pública Estadual de Ensino de SC e na UNIPLAC. E-mail: nanciartes@yahoo.com.br

2. Doutora em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação na UNIPLAC. E-mail: miuxe@uol.com.br

3. Doutora em Educação e Cultura pela Universidade de Osnabrueck, Alemanha, com revalidação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação na UNIPLAC/SC. E-mail: mareligraupe@hotmail.com

4. Outro modo como a cidade é conhecida.


Revista ESPACIOS. ISSN 0798 1015
Vol. 38 (Nº 35) Año 2017

[Índice]

[En caso de encontrar algún error en este website favor enviar email a webmaster]

revistaespacios.com