ISSN 0798 1015

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Vol. 38 (Nº 32) Año 2017. Pág. 6

O LARGO: uma análise a partir da perpectiva do espaço e do lugar, da identidade e da memória

THE WIDE: an analysis from the perspective of space and place, identity and memory

MENDES, Renata C. P. R. 1; LOPES, Muranna S. 2; SARDINHA, Cristiano de L. V. 3; SOUSA, Mônica T. C. 4

Recibido: 04/02/2017 • Aprobado: 27/02/2017


Conteúdo

1. Introdução

2. O “LARGO” E O “largo”: questões relativas ao espaço e ao lugar

3. A constituição de identidades fragmentadas

4. Os rastros da memória

5. Considerações finais

Referências


RESUMO:

O presente trabalho analisa o conto “O Largo”, de Manuel da Fonseca. Aborda as categorias de espaço e lugar, identidade e memória constantes no referido conto. Apoia-se na perspectiva Humanista. Demonstra como se deu a transformação do lugar em espaço, a partir da chegada de um elemento desestruturante que veio a interferir e modificar as identidades. Apresenta questões relativas à memória. Dialoga e fundamenta-se em autores que trabalham com cada uma das categorias propostas.
Palavras-chave: Espaço. Lugar. Identidade. Memória. Literatura.

ABSTRACT:

The present work analyzes the short story "The wide", by Manuel da Fonseca. It addresses the categories of space and place, identity and memory in that story. It is based on the Humanist perspective. It shows how the transformation of place into space took place, from the arrival of a de-structuring element that came to interfere and modify identities. Talk about memory. It discusses and is based on authors who work with each of the proposed categories.
Keywords: Space. Place. Identity. Memory. Literature.

1. Introdução

“O fogo e as cinzas” é uma obra portuguesa, publicada em 1951, de autoria de Manuel da Fonseca, importante escritor português. Composta pela reunião de onze contos ao todo, dentre os quais está “O Largo”, objeto de análise do presente trabalho.

Este é um conto simbólico e alegórico, pois está repleto de possíveis representações sobre o mundo e da maneira como se pode compreendê-lo. Dessa maneira, descreve as alterações experimentadas por um vilarejo com a chegada da modernidade, partindo dos acontecimentos de um local específico, que é o Largo.

De início, considera-se que para a produção da história, o autor utilizou-se, preponderantemente, de elementos subjetivos, posto que não se observa uma preocupação com o detalhamento das características físicas do local.

Partindo das conceituações formulada pelos humanistas e defendida por Yi-Fu Tuan (2013), o presente artigo pretende analisar as questões relativas ao espaço e ao lugar no referido conto, demonstrando a alteração conceitual experimentada pela Vila e, especificamente, pelo Largo, a partir da instauração do comboio, símbolo da mudança.

Na perspectiva de Stuart Hall (2015) e de Woodward (2000), observa-se a ideia da identidade presente no texto, tomando como referência as transformações trazidas pela globalização, um fenômeno que influenciou diretamente a maneira como as personagens passaram a ver e se relacionar com o mundo e também na forma como a própria narrativa se desenvolve e culmina.

Por sua vez, trata a questão da memória partindo das ideias propostas por Pollak (1992) e Halbwachs (2006), cuidando em refletir acerca da relação entre a memória individual e a memória coletiva. Além de pensar e identificar uma passagem em que o conceito de memória por tabela pode ser desenvolvido.

2. O “LARGO” e o “largo”: questões relativas ao espaço e ao lugar

A narrativa do conto “O largo” representa um cotejo entre o passado e o presente ao apresentar a vida no Largo antes e após a chegada do comboio. Afinal, logo nas primeiras linhas quando diz que “Antigamente, o largo era o centro do mundo. Hoje, é apenas um cruzamento de estradas” (FONSECA, 1981, p. 23), determina um marcador temporal que situa a narrativa no tempo e remete o leitor ao passado ao mesmo passo em que indica que algo que aconteceu anteriormente veio a alterar uma dada situação.

Nesse instante, induz o questionamento acerca da razão dessa alteração que veio a provocar um estado de desequilíbrio naquilo que outrora estava aparentemente equilibrado, revelando em seguida, no segundo parágrafo, que foi o comboio que matou o Largo.

Em vista disso, o comboio simboliza a figura da modernidade e do progresso que veio a transformar toda a atmosfera daquele lugar, inclusive o modo de vida e o comportamento das pessoas que por ali transitavam. O comboio representa, portanto, uma reestruturação socioeconômica naquela realidade social. Não apenas por ser um meio de transporte, mas, principalmente, pelos objetos inovadores que insere naquele contexto.

Ao desenvolver a narrativa, o autor escolhe pela descrição do Largo a partir dos elementos que compõem a subjetividade das pessoas que ali circulavam, além de traçar as alterações oportunizadas na paisagem local após a chegada do comboio. Assim, utiliza-se, principalmente, do espaço e da paisagem para apresentar as consequências instauradas pelo progresso industrial, cerne de uma crise social, em uma comunidade que outrora era basicamente agrária.

Neste conto, o espaço adquire uma infinidade de funções. O espaço físico desenhado não apenas demarca uma localização, mas também sugere um viés social e caracteriza aspectos estreitamente ligados aos seres humanos.

Desta forma, o espaço físico e o elemento humano se fundem em uma única paisagem, razão pela qual se pode dizer que o espaço atua e condiciona a vida das personagens, refletindo em suas emoções e sentimentos particulares. Frente a essa discussão, é válido frisar que o espaço é uma ideia mais abstrata e indiferenciada e, na medida em que este é conhecido e dotado de valor, torna-se lugar.

Nessa perspectiva, o Largo e sua relevante significação, representada no passado, inicialmente, constitui-se um lugar, dado o valor que a ele é atribuído. Afinal, “O lugar é uma classe especial de objeto. E uma concreção de valor, embora não seja uma coisa valiosa, que possa ser facilmente manipulada ou levada de um lado para o outro” (TUAN, 2013, p. 22).

Sob outra perspectiva, não há a fixação no acompanhamento de uma personagem particular, já que, neste, estas foram silenciadas, limitando-se a contar o antes e o depois do comportamento das personagens da narrativa, quase que como uma pintura daquilo que se via.

Assim, em verdade, cabe ao Largo o papel de protagonista do conto, dada a sua personificação, já que vive e morre concomitantemente com as pessoas que compuseram o passado daquela localidade, tal qual se vê no trecho: “O comboio matou o Largo. Sob o rumor do rodado de ferro morreram homens que eu supunha eternos” (FONSECA, 1981, p. 23).

Desse modo, linha a linha, Manuel da Fonseca desenha todos os tipos que formavam e atuavam no Largo, abordando-os intimamente, através dos apelidos de cada personagem. De maneira a ratificar a personalidade do Largo enquanto composta pelo misto entre a coletividade e o próprio espaço.

Ao estabelecer a divisão temporal, vê-se que antes, na perspectiva da Vila, o Largo era o “centro do mundo” (FONSECA, 1981, p. 23), local onde as pessoas reuniam-se, independentemente de classe ou posição social, já que todos se tratavam de maneira igual e indistinta. Era ainda a escola da vida, ou seja, o local em que as crianças brincavam, aprendiam e preparavam-se para a fase adulta ao transitar e observar o comportamento dos mais velhos.

No Largo os acontecimentos e as novidades eram compartilhadas pelos viajantes e assim a população se relacionava com o mundo exterior. As verdades plantadas naquele contexto eram indestrutíveis, não havia questionamento ao que se punha, nem mesmo às inverdades. Afinal, o que vinha do Largo, considerando-se a origem, era validado por si só.

Porém, a chegada do comboio trouxe consigo a instalação de fábricas e o desenvolvimento do comércio, impondo o capitalismo e modificando as estruturas sociais, contribuindo para a decadência do Largo. É o que se confirma no trecho:

Veio o comboio e mudou a Vila. As lojas encheram-se de utensílios que, antes, apenas se vendiam nos ferreiros e nos carpinteiros. O comércio desenvolveu-se, construiu-se uma fábrica. As oficinas faliram, os mestres-ferreiros desceram a operários, os alvanéis passaram a chamar-se pedreiros e também se transformaram em operários. (FONSECA, 1981, p. 26)

Ora, o capitalismo e a globalização impuseram-se de tal forma naquele local que teve a força de modificar as estruturas sociais. Uma diversidade de elementos instaurou-se velozmente e mudanças profundas foram provocadas, transformando a vida das pessoas, demarcando diferenças sociais, criando novos hábitos e costumes e acelerando a noção de tempo.

O que está sendo criado é um novo espaço cultural eletrônico, uma geografia ‘sem lugar’ da imagem e da simulação. ... Essa nova arena global da cultura é um mundo de comunicação instantânea e superficial em que os horizontes de espaço-tempo foram comprimidos e desmoronaram. A globalização é a compreensão dos horizontes espaço-tempo e a criação de um mundo de instantaneidade e superficialidade. [...] Neste cenário global, o econômico e o cultural estão em contato intenso e imediato um com o outro – com cada ‘outro’ (um ‘outro’ que não está mais simplesmente ‘lá fora’, mas também no interior). (HALL, 2015, p. 43)

A partir de então, o Largo perdeu a valoração e humanização para aquelas pessoas, tornando-se carente do poder de conexão e reunião, e fragmentou-se, passando a ser “todo o mundo” (FONSECA, 1981, p. 27), quer dizer, descentralizando-se e adquirindo a característica de um espaço público qualquer. Posto que este é “um símbolo comum de liberdade no mundo ocidental. O espaço permanece aberto; sugere futuro e convida à ação” (TUAN, 2013, p. 72).

Em relação à paisagem, superficialmente, vislumbra-se sua descrição quando fala das faias, pois coloca que, na época do auge do largo, tinham vida, “agitavam-se, viçosas. Acenavam rudemente os braços e eram parte de todos os grandes acontecimentos” (FONSECA, 1981, p. 24). Com as transições, as árvores do local perdem a vitalidade e tornam-se sem importância.

O que era o “Largo” transformou-se em “largo” e o antigo lugar agora morria, não estruturalmente, pois permanecia no mesmo sítio físico, porém as pessoas, seus interesses e necessidades deslocaram-se de lá e migraram para ambientes pequenos, restritos e segregados. Naquele ambiente restaram apenas alguns indivíduos, que passaram a ser tidos como marginalizadas e resistentes às mudanças do novo mundo.

3. A constituição de identidades fragmentadas

Ao analisar o conto de Manuel Fonseca, a questão pertinente à identidade também merece guarida. Afinal, o autor inicia o conto quase que com uma pintura das personagens, elencando tipos fixos. Era a partir do Largo que as identidades eram formadas.

A narrativa ocupa-se em apresentar as personagens que viveram no Largo e sugere que a Vila era, primordialmente, habitada por uma sociedade de base agrária, fundada no modelo patriarcal, haja vista que cabia ao público masculino, adultos ou crianças, a circulação pelo Largo, àquela época, considerado o centro do mundo. O que se confirma com a afirmativa de que “Eram homens que, de qualquer modo, dominavam no Largo” (FONSECA, 1981, p. 26).

Ademais, todas as personagens descritas pelo narrador em pormenores, senhores da Vila ou plebeus, são homens, descritos por seus comportamentos e características pessoais próprias, tratados de maneira íntima e com afinidade através de seus apelidos: o senhor Palma Branco, os três irmãos Montenegro, o Badina, o Estróina, o Má Raça, o lavrador de Alba Grande, o Mestre Sobral, Ui Cotovio, o Acácio, o João Gadunha e o Rubião.

É válido frisar que o próprio narrador, ao colocar-se entre os demais, em breves trechos, revela-se enquanto uma personalidade masculina que habitou aquele local, indicando que também esteve ali e comportando-se enquanto um narrador-personagem, contribuindo para a constatação de que se trata de uma experiência emotiva e subjetiva.

É o que se confirma nas passagens a seguir quando o narrador aparece, quase que oculto, pois apenas sutilmente declara-se através do emprego dos pronomes pessoais “eu” e “nós”: “Sob o rumor do rodado de ferro morreram homens que eu supunha eternos” (FONSECA, 1981, p. 23, grifo nosso), “E, lá ao cimo da rua, esgalgado, um homem que eu nunca soube quem era e que aparecia subitamente à esquina, olhando cheio de espanto para o Largo” (FONSECA, 1981, p. 24, grifo nosso). Em outra oportunidade, expõe-se novamente: “E esperavam-nos, submisssas” (FONSECA, 1981, p. 25, grifo nosso).

De outra forma, apresenta as mulheres sem qualquer especificação individual, sem indicá-las pelo nome, descrevendo-as de maneira geral, enquanto, essencialmente, submissas, acomodadas no fundo das casas, penteando suas tranças compridas, ocupando-se com os afazeres domésticos, servindo aos prazeres dos companheiros, visitando as amigas e indo à missa. Impossibilitadas de andarem sozinhas, sempre que saíam às ruas estavam acompanhadas por algum homem da família.

A chegada do comboio, símbolo da modernidade e do capitalismo, porém altera esse quadro. Afinal, o processo de globalização alcançou àquela comunidade, apresentando-lhes novos objetos, trazendo a Guarda, que representou o poder de polícia, e criando, por sua vez, um novo espaço e a constituição de novas identidades.

Os meios de comunicação, aqui marcados pelo telefone, possibilitaram as notícias e puseram a Vila em contato com as demais partes do mundo. Já não se contentavam com as verdades reais ou falseadas, outrora inquestionadas, contadas no Largo, pois “As telefonias gritam tudo que acontece à superfície da terra e das águas, no ar, no fundo das minas e dos oceanos. O mundo está em toda parte, tornou-se pequeno e íntimo para todos” (FONSECA, 1981, p. 26).

Com as mudanças, as mulheres, embora tenham permanecido descritas de maneira generalizada no texto, adquiriram maior autonomia. Puderam cortar os cabelos, utilizar maquiagem e transitar sozinhas pelas ruas. Passaram a ter a companhia dos maridos nas missas.

Os homens, as mulheres, e até as crianças, se dividiram, de acordo com os interesses e com as necessidades. Deixaram de descer ao Largo e passaram a frequentar o Clube. A Vila fragmentou-se. As cafeterias passaram a ser frequentadas de acordo com a condição financeira e posição social de cada um. Ao antigo Largo uniu-se a ideia de marginalidade e de resistência às mudanças ocorridas.

Pelo que se vê, as identidades foram modificadas historicamente em razão das transformações impostas pela modernidade e pela globalização, fundando a ideia de sujeito fragmentado. As pessoas não se comunicam mais apenas entre si, as declarações são questionadas, a comunicação expande-se para além daquele contexto, sendo possível checar a sua validade.

Seguindo essa perspectiva, Hall (2015, pp. 12-14) é quem associa as mudanças no conceito de sujeito às transformações que ocorrem no mundo moderno, sobretudo aquelas ocasionadas pelo processo de globalização, tal qual ocorre no conto, onde a conexão entre diferentes áreas do globo tem o condão de alcançar e transformar tudo, uma vez que, a modernidade caracteriza-se pela mudança, pelo rompimento pelo deslocamento ou descentralização do sujeito.

[...] a identidade importa porque existe uma crise da identidade, globalmente, localmente, pessoalmente e politicamente. Os processos históricos que, aparentemente, sustentavam a fixação de certas identidades estão entrando em colapso e novas identidades estão sendo forjadas, muitas vezes por meio da luta e da contestação política. (WOODWARD, 2000, p. 39)

No “Mundo Todo” que fora estabelecido constituiu-se um novo indivíduo cuja identidade é fragmentada. A vida das pessoas não é mais centralizada nem circunscrita ao ambiente do largo, mas sim fracionada em várias partes isoladas entre si.

Ao revés, o narrador aponta o caso de João Gadunha e de Ranito, figuras que costumavam ter prestígio no passado e insistiam na fixidez de sua identidade, pois não se permitiam transmudar-se. Um por suas histórias sobre uma Lisboa que nunca estivera presente, mas que centralizava a atenção de todos, e o outro por sua valentia referendada e temida por seus pares.

Ambos, nos novos tempos, tornaram-se sem prestígios e sem préstimos. Gadunha pela chegada da telefonia que permitia notícias exteriores à Vila e desmentia a sua infundada experiência. Ranito com a chegada da Guarda Nacional, pois acredita-se que esta passou a impor a ordem na localidade e sua importância e préstimo desapareceu.

4. Os rastros da memória

No decorrer da narrativa pode-se observar que o narrador retoma diversas memórias pertinentes ao Largo e sua vivacidade e relevância antes da chegada do elemento desestruturante representado pelo comboio. A esse respeito, Halbwacks (2006) sugere que a memória busca apoio sobre o passado vivido.

Dito isto, conforme já apontado anteriormente, logo no segundo parágrafo, o autor rememora a movimentação e a atividade do lugar, as características e o comportamento das pessoas que o frequentavam, bem como as histórias e as experiências vividas. Ao fazê-lo, a visão apresentada diz respeito às memórias individuais do narrador através da experiência, ou seja, “as diferentes maneiras das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade” (TUAN, 2013, p. 17), ao mesmo passo em que retrata a memória coletiva compartilhada por um grupo, uma vez que as lembranças são constituídas em seu interior por indivíduos que dão vida a um determinado lugar.

Este é o posicionamento defendido por Halbwacks (2006, p. 30) ao afirmar que “Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós”. Isto é, mesmo quando estamos sozinhos fisicamente, carregamos conosco a vivência junto a outras pessoas.

No conto de Fonseca, a memória coletiva do Largo sobrevive até o acontecimento da evasão do lugar, quando as pessoas deixam de frequentá-lo, por já não representar o centro do mundo, e passam a vê-lo sob outra perspectiva, sendo palco apenas dos bêbados e dos malteses e representando a imagem dos resistentes à evolução dos tempos.

Por outro viés, o autor traz à baila na parte final do texto a situação do bêbado João Gadunha que insiste em falar sobre Lisboa, sem nunca ter estado presente ali. Porém, seu discurso é formado pela imitação de comportamentos e situações que ouviu através de terceiros quando ainda era criança, mas que incorporou de determinada maneira que a descreve como se pertencesse a situação.

Nessa oportunidade, constata-se a presença da chamada memória por tabela, quer dizer, João Gadunha relata uma experiência que não foi vivida por ele, mas ao qual ele mantém um sentimento de íntimo pertencimento. Para melhor esclarecer, diz-se que este é um elemento constitutivo da memória, individual ou coletiva, e diz respeito aos “acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não” (POLLAK, 1992, p. 201).

Nota-se que a veracidade dada aos discursos outrora produzidos no Largo, a partir do novo contexto, esvazia-se de importância. Nesse novo contexto, os relatos apresentados podiam ser comparados e verificados, a fim de extrair a sua credibilidade. E tão logo constatado o sobressalto, o caráter de verdade fora destituído.

5. Considerações finais

A observância dos aspectos relativos às categorias de espaço e lugar, identidade e memória presentes no conto “O Largo” constituiu-se o intento desse trabalho. Afinal, o referido texto apresenta trechos que possibilitam a relação entre a literatura e tais conceituações emprestadas da geografia humanista, dos estudos sociais e culturais.

O Largo figura enquanto protagonista, pois, embora não tenha uma vida própria e diga respeito a um objeto físico, a narrativa constrói-se em seu entorno e constitui-se de acordo com a valoração atribuída à ele pelos indivíduos.

As descrições apresentadas são marcadas pelas características de dois tempos, o passado e o presente.  Nesse contexto, a chegada da modernidade e da globalização, com seus objetos, estilos de vida, estreitamento da comunicação, por exemplo, interferem na maneira em que o Largo e as personagens que o movimentavam são transformadas.

É possível perceber a passagem do Largo enquanto lugar, íntimo, dotado de emoção e memórias pessoais, que ora significa o centro do mundo para as pessoas, ao largo enquanto espaço, aberto e livre, conforme a significância e valoração atribuída ou perdida. Nesse aspecto, recorreu-se à leitura de Yi-Fu Tuan, autor que trabalha com o espaço em uma abordagem física e psicológica.

Da leitura do conto foi possível extrair aspectos relativos à noção de identidade e do descentramento e fragmentação do sujeito, tal qual apresentada por Stuart Hall e por Woodward, haja vista que os indivíduos foram transformados pelas inovações vivenciadas.

As questões pertinentes à memória também foram elucidadas, fundamentadas com as ideias propostas por Halbwacks e Pollak, já que parte da história passa-se no passado, sendo contadas como uma espécie de lembrança do que havia se passado no Largo antes da instauração da modernidade. E também está presente quando a personagem de João Gadunha diz histórias sobre uma Lisboa que nunca conheceu pessoalmente, mas que incorporou de tal maneira como se a conhecesse intimamente, marcando um dos elementos que compõem a memória.

O Largo é, portanto, um texto literário rico em interpretações e que possibilita a leitura e análise a partir de variadas concepções, sendo todas válidas para a compreensão de percepções propostas. Razão pela qual seu estudo não se esgota aqui, sendo um convite para novas abordagens e estudos.

Referências

FONSECA, Manuel da. O fogo e as cinzas. 9. ed. Lisboa: Caminho, 1981.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12. ed. Trad. Tomaz da Silva, Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.

POLLAK, Michel. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, vol. 5, nº 10. Rio de Janeiro, 1992. p. 200-212.

TUAN, Yi-Fu. 1930. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo: Ed. da UEL, 2013.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Identidade e diferença: a perspective dos Estudos Sociais. Petrópolis: Vozes, 2000.


1. Mestranda do Programa Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (UFMA). Especialista em Direito do Trabalho, Direito Público e Metodologia de Ensino da Língua Espanhola. Professora Substituta da Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: renatacpreis@hotmail.com

2. Mestranda do Programa Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (UFMA). Especialista em Educação, pobreza e desigualdade social.

3. Mestrando do Programa em Cultura e Sociedade (UFMA). Especialista em Direito Público e Direito Constitucional.

4. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Mestrado em Direito e do Mestrado Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (UFMA).


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