ISSN 0798 1015

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Vol. 38 (Nº 07) Año 2017. Pág. 11

Dinâmicas sociais no campo: Concentração da propriedade de terra, pobreza rural, organizações camponesas e movimentos sociais no campo no século XX

Social dynamics in the field: concentration of ownership of land, rural poverty, peasant organizations and social movements in the field in the 20th century

Daniela Neves BORGES 1; Janes Socorro da LUZ 2

Recibido: 26/08/16 • Aprobado: 20/09/2016


Conteúdo

1. Introdução

2. As dinâmicas sociais no campo: entre a concentração da terra e a pobreza rural

3. A resistência: os movimentos sociais no campo e as organizações camponesas

4. Considerações finais

Referências


RESUMO:

A sociedade agrária no Brasil, durante o século XX, se desenhou a partir do direito à posse da terra. Nesse contexto, o presente artigo destaca dois aspectos: a concentração da propriedade da terra, adquirida por meios ilícitos; e a pobreza rural, concretizada na expulsão de camponeses de suas terras, submetendo-os ao trabalho assalariado. Os conflitos agrários foram repletos de violência e marcados por mortes, caracterizando o apogeu dos reflexos da questão agrária. As resistências e as lutas apresentadas nesse processo, histórico e social, foram possíveis graças ao desenvolvimento das organizações camponesas e os movimentos sociais no campo.
Palavras chave: Questão agrária. Conflitos no campo. Movimento social.

ABSTRACT:

The agrarian society in Brazil, during the 20th century, designed from the right of possession of the land. In this context, this article highlights two aspects: the concentration of ownership of land, acquired by unlawful means; and rural poverty, realized in the expulsion of peasants from their lands, subjecting them to salaried work. The agrarian conflicts were filled with violence and marked by killings, characterizing the apogee of the reflexes of the agrarian question. Resistances and struggles presented in this process, social and historical, were made possible thanks to the development of peasant organizations and social movements in the country.
Keywords: Agrarian question. Conflicts in the field. Social movement.

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1. Introdução

No decorrer do século XX, a sociedade rural brasileira apresentou diversos modos de resistências contra uma série de desigualdades sociais baseadas na concentração da propriedade da terra. Assim, a resistência, articulada nas formas de organizações camponesas e movimentos sociais, apresentou-se em contraponto à exclusão a partir da desapropriação dos camponeses de suas terras e da exploração do trabalho, como destacam Martins (2009) e Moreyra (2015). Asociedade agrária revelou, portanto, um campo de lutas e de diversas articulações políticas e sociais – que demonstraram a resistência e o domínio – entre diversos agentes que manifestavam interesses em conquistar o direito à posse da terra.

Tais questões foram resultados do processo histórico de transformação em que se destaca a apropriação da terra como propriedade privada e a modificação das relações de trabalho, as quais sofreram variações após o fim do regime escravocrata. Observa-se que a mudança nas relações de trabalho, “não se constituiu na prática, econômica e politicamente; a não ser pouco a pouco, de forma descontínua e desigual, se examinamos o conjunto da história e da sociedade do país” (IANNI, 2004, p.222). Nesse sentido, não menos importante do que destacar os objetivos e interesses que envolveram tais conflitos em relação à posse da terra, o artigo propõe, primeiramente, compreender a dinâmica entre trabalhadores rurais livres e proprietários de terras no decorrer do século XX, que foram remetidas na forma como se manteve o modelo econômico do Brasil, ainda, em meados do século XIX.  No segundo momento, propõe-se analisar como se organizaram os camponeses, no contexto de apropriação da terra pelas grandes empresas capitalistas que os expulsavam do campo. Destaca-se, nesta ocasião, a formação e o contexto de alguns dos movimentos ocorridos no país, por exemplo a organização camponesa que ocorreu em Goiás, Trombas e Formoso.

2. As dinâmicas sociais no campo: entre a concentração da terra e a pobreza rural

A concentração da terra e a pobreza rural foram delimitadas a partir de longo processo histórico, o qual estimulou dinâmicas sociais excludentes. De acordo com os dados último Censo Agropecuário, elaborado pelo IBGE, em 2006, 45% dos estabelecimentos rurais no país possuíam mais de 1.000 hectares, enquanto, apenas 2,34% dos estabelecimentos correspondiam a menos de 10 hectares. Na região Centro-Oeste esse número chega a 70.09%, ou seja, representa uma maior concentração de terras do que no país. Esse processo de exclusão e desapropriação de posseiros de suas terras foram determinantes no que se refere ao surgimento de movimentos sociais. Assim, ainda no fim do século XIX, pode-se considerar tais transformações, que ocorreram de forma descontínua. De tal maneira, Martins (1986) destaca que nem mesmo ofim da escravidão permitiu o término do modelo econômico colonial, pelo contrário, o trabalho livre objetivava apenas uma reestruturação da economia estabelecida na exportação e na grande propriedade de terra, essa contradição se dava a fim de manter o padrão de realização do capitalismo no país.

Nesse sentido, Martins (1986)elabora uma análise crítica para o modelo proposto nas relações de produção aderidas pelos fazendeiros a fim de dar coerência na relação contraditória, criada com o fim da escravidão. Dessa forma, observa-se que “a personificação do capital no burguês acoberta as relações que engendram esse mesmo capital, revestindo de uma linearidade utópica a descontinuidade tensa em que se dá a exploração do trabalho” (Martins, 1986, p.13). Assim, as décadas que antecederam o século XX caracterizavam um modelo peculiar de trabalho, o colonato. Para o autor, esse modelo não pode ser definido como relação capitalista de produção, pois,no mesmo não há remuneração em dinheiro, além do colono não ser um trabalhador individual, a relação de trabalho imposta nesse modelo é familiar e não de um trabalhador individual, como observa-se nas relações capitalistas de produção.

A importância de compreender tal dinâmica apresentada no fim do século XIX se dá, pois, essa relação será característica essencial nas relações de trabalho, assim como no direito da posse da terra, apresentados no desenvolver do século XX até os dias atuais. De tal forma, a hipótese apresentada por Martins (1986, p. 19-20) esclarece todo o desenvolver das relações de produção no campo: “o capitalismo, na sua expansão, não só redefine antigas relações, subordinando-as à reprodução do capital, mas também engendra relações não-capitalistas igual e contraditoriamente necessárias a essa reprodução”.

A partir desta lógica, a propriedade privada da terra e o surgimento do valor agregado ao pedaço de chão, estabelecido no fim do século XIX, formavam uma manobra utilizada pelo sistema capitalista no momento que mudavam as relações de trabalho de escravo para o livre. No capitalismo, “a propriedade capitalista da terra é renda capitalizada; é direito de se apoderar de uma renda, que é uma fração da mais-valia social, e, portanto, pagamento subtraído da sociedade em geral” (Oliveira, 1986, p. 79). De tal maneira, a terra que antes valia menos do que o escravo – isso porque o escravo, que era a própria riqueza, representava a possibilidade de criar riqueza, produzindo – passou a reproduzir as relações do capital, como forma de manter os trabalhadores sujeitos ao sistema. Assim, “a renda capitalizada no escravo transformava-se em renda territorial capitalizada: num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa” (Martins, 1986, p. 32).

As relações de trabalho cativo deixaram de ocorrer na medida em que o Estado custeava a vinda de imigrantes europeus para trabalhar, dispensando os custos que o fazendeiro tinha ao transportar tais trabalhadores. Após a criação da Lei de Terras, em 1850, que regulamentou o direito de propriedade de terras, a aquisição de novas terras deveria se dar mediante a compra. O apossamento não mais dava o direito à propriedade, nesse sentido muitos fazendeiros buscaram falsificadores para conseguir seus títulos.Nesse contexto, os fazendeiros passaram a pagar títulos de novas propriedades, a partir da grilagem de terras devolutas e de terras pertencentes aos posseiros. A grilagem, segundo Ianni (1981), desempenhou uma importante função no que se refere à adesão de novas frações de terra, uma vez que se apresenta como um processo de falsificação de documentos, usado para adquirir títulos de compra e escrituras de terras devolutas e/ou ocupadas por posseiros.Para o autor, a fraude possibilitou a transformação da terra em propriedade privada de latifúndios e grandes empresas.

Martins (1986) destaca que a formação e o trato dos cafezais representavam grande parte dos problemas durante a produção para os fazendeiros, uma vez que estes demandavam um processo longo, que necessitava de grande quantidade de mão de obra. De tal modo, só foi possível estabelecer a acumulação do capital, com a extensão das fronteiras econômicas para novas regiões, a partir das relações não capitalistas de produção, praticadas nas formas do colonato e, ainda, do arrendamento. Visto que, a prática do arrendamento ou meação, se dá a partir de um acordo – formal ou informal, entre proprietário e trabalhador – no qual é estabelecida a cessão temporária da terra ao trabalhador em troca do produto, de benfeitorias ou do dinheiro (Almeida; Buainain, 2003). O arrendamento mostra a ruptura com o antigo sistema e direciona à nova face econômica, em que o trabalhador “não dispunha ainda de sítios ou de terra para roçados onde pudesse cultivar na estação chuvosa as culturas alimentares: todo terreno de lavoura supunha agora contrapartida sob a forma de arrendamento ou meação; a terra impõe-se como mercadoria a todos” (Garcia; Palmeira, 2001, p. 65).

Além do colonato e o arrendamento, segundo Ianni (2004), houve ainda diferentes configurações na organização das relações de produção, como o caso do camarada, apesar da pequena escala, esse baseava-se no trabalho assalariado, na cafeicultura do século XIX até 1930.  No entanto, nota-se que nem todas as sociedades passaram pela mesma transformação nas relações de produção. Moreyra (2015) argumenta que o estereótipo do senhor bondoso, explícita na figura de algumas “pessoas que desfrutavam da reputação de serem progressistas (nos limites da época e da sociedade regional), democráticas e até igualitárias” (Moreyra, 2015, p.25), predominou na sociedade goiana, e o latifúndio e a pecuária não deram bases para o surgimento da burguesia, como na sociedade do café. Conforme o autor, versaram na história goiana os homens ilustres, os quais compunham o cenário político, por meio de uma postura autoritária e oligárquica. Imperou, portanto, a ideia de atraso, a qual não suportava como fundamento a igualdade constitucional. Assim, os trabalhadores – camaradas – com seus acanhados salários, eram submetidos a escravidão por dívida. Essa situação foi

[...] juridicamente amparada e plenamente vigente, permaneceu em Goiás até o final do ano de 1930, quando a lei foi derrogada discricionariamente pelo interventor federal e substituída pelo Decreto nº 411 de 23 de dezembro de 1930, editado pelo governo provisório com a pretensão de combater a superexploração do trabalhador rural (Moreyra, 2015, p. 28).

Assim, remanescente do colonato, o arrendamento será estabelecido como forma de organização do trabalho, mas essa não será a única forma de organização. Além do boia-fria, volante, corumba ou peão, destaca-se

[...] a parceria, o arrendamento, a meação e outras, que não se ajustam pura e simplesmente às condições de compra e venda de força do trabalho. O barracão, armazém, venda, cambão, aviamento são distintas modalidades de comércio entre trabalhadores rurais e os seus empregadores, modalidades essas nas quais a condição operária aparece subsumida ou articulada a formas de organização das relações de produção (Ianni, 2004, p.222).

As relações de trabalho estabelecidas em um contexto de expansão do capitalismo concretizaram ainda mais as desigualdades sociais entre grandes proprietários (a burguesia), pequenos colonos (o campesinato) e, ainda, peões (o proletariado) - os peões ou vaqueiros compõem um proletariado rural. De acordo com Ianni (1981), alguns posseiros tornaram-se donos de suas terras. No entanto, muitos posseiros a maioria deles foram expropriados de suas terras, a partir da violência armada privada ou estatal, migrando para cidade e compondo parte do proletariado urbano e rural.

Em Oliveira (1981) é possível notar que o Nordeste também foi resultado de uma transformação na estrutura da produção, principalmente, após a inserção do capital internacional. O autor adverte que “os rebanhos eram de propriedade privada, e a terra não era propriedade de ninguém, em vastas porções do sertão nordestino” (1981, p. 46), remetendo a pecuária às atividades extrativas.De tal modo, em torno da monocultura da cana-de-açúcar a “economia semicamponesa” (Oliveira, 1981, p. 46) se deu, até a introdução do cultivo do algodão, quando

Emerge aqui a estrutura fundiária típica do latifúndio: o fundo de acumulação é dado pelas ‘culturas de subsistência’ do morador, do meeiro, do posseiro, que viabilizam, por esse mecanismo, um baixo valor que é apropriado à escala de circulação internacional de mercadorias, sob a égide das potências imperialistas (Oliveira, 1981, p. 46).

No intuito de desenvolver as atividades pecuárias e algodoeiras, que estabeleciam-se no Nordeste, o Estado proporcionou algumas ações, como construção de barragens, poços e estradas, a partir da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) e, posteriormente, do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). De acordo com Oliveira (1981), as ações proporcionadas pelo DNOCS não favoreceram diretamente grande parte da população, representada pelos meeiros, pequenos sitiantes e parceiros, que estava à margem das grandes produções. Contudo, diferentemente da expansão das atividades produtivas de São Paulo, o Nordeste apresentava bases produtivas baseadas no “semiproletariado” (Oliveira, 1981, p. 70), de tal forma o autor destaca a seguinte situação:

As relações, portanto, entre Estado e sociedade civil no Nordeste tomam uma feição extremamente contraditória: oligarquia algodoeira-pecuária e Estado se interpenetravam no ‘modelo’ DNOCS, enquanto, o Estado, controlado pela burguesia industrial de São Paulo, praticava uma política de reforço ao debilitamento das bases autóctones da burguesia regional do Nordeste, requisito para a expansão capitalista em escala nacional (Oliveira, 1981, p. 70).

Em 1959, cria-se a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), com o objetivo de planejar e equilibrar os conflitos regionais no país. Destaca-se que a SUDENE é criada após o surgimento das Ligas Camponesas – movimento que representa a classe periférica nordestina, apoiado por camponeses e trabalhadores rurais, que reivindicavam autonomia política e econômica frente aos grandes produtores, os coronéis – e das ameaças a política e aos interesses econômicos existentes na região, mas a posiçãoda SUDENE para Oliveira (1981, p. 119) “é tanto irresoluta enquanto o conflito de classes não se define, quanto o próprio papel do organismo do planejamento é mutável devido ao próprio movimento das classes sociais”. Ao passo que crescia o papel dos movimentos populares no Nordeste, as tensões políticas internacionais, entre capitalismo e socialismo, aumentavam de forma que atingiam claramente as políticas brasileiras, inclusive a própria SUDENE. 

Tais tensões foram intensificadas no país com o golpe de 1964, como observa Chauí (2001) o golpe foi aplicado sob forte influência do verdeamarelismo, o qual significou nacionalismo espontâneo e alienação, no início dos anos 1960,o movimento foi revitalizado e reforçado nos anos da ditadura (1964-1985);e a influência geopolítica do projeto idealizado pelo general Golbery do Couto e Silva, que apresentava uma imagem da “vastidão do território, nas riquezas naturais e nas qualidades pacíficas, empreendedoras e ordeiras do povo” (Chauí, 2001, p. 41). Essas influências foram vistas na atuação do governo militar e na idealização de suas tarefas: a integração nacional, a segurança nacional e o desenvolvimento nacional. Nesse contexto a SUDENE é apresentada por Oliveira (1981, p. 125) como “um aviso prévio do Estado autoritário, da exacerbação da fusão Estado-burguesa, da dissolução da ambiguidade Estado-burguesia, a tal ponto que um se confunde com o outro, e os limites de Estado e sociedade civil parecem borrar-se completamente”.

De tal modo, as Superintendências do Desenvolvimento foram responsáveis por atuarem em diversas regiões do país, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), “iniciou a política governamental de incentivos fiscais e creditícios para a formação e a expansão da empresa agropecuária”(Ianni, 1981, p.180). As políticas favoreceram, durante a segunda metade do século XX, consequentemente, a concentração da propriedade da terra dedicada às grandes empresas. Tais propostas governamentais corroboraram para uma maior divergência entre empresa e campesinato, uma vez que o objetivo do Estatuto da Terra voltava-se para minimizar as questões agrárias, principalmente, as organizações camponesas que se estabeleciam no país. Portanto, como destaca Martins (1983), a reforma agrária visava enfraquecer o campesinato oferecendo novas áreas para assentar os trabalhadores afetados pela concentração da terra. Mas, o único apoio à questão agrária “foi em grande parte fechada apenas dois anos após a promulgação do Estatuto, quando o governo federal estabeleceu uma política de subsídios para estimular a implantação de empresas industriais e agropecuárias na região amazônica” (Martins, 1983, p. 97).

O que se observa, a partir das considerações de Martins (1983) e (2009), é que as políticas de integração nacional, proporcionadas pelo Estado, foram determinantes no que se refere a ocupação de áreas vazias pelas grandes empresas agropecuárias, essas políticas foram destinadas, principalmente, às regiões do Centro-Oeste e Norte do país. Nota-se que o próprio discurso empregando os “espaços vazios” deixa claro a pouca importância, expressa na ocupação de posseiros e índios que viviam nessas regiões, para o Estado. Nesse sentido, Martins (2009) descreve a seguinte situação:

Algumas tribos perderam nesses poucos anos até dois terços de sua população. Sem contar, também, que milhares de camponeses teriam que ser expulsos de suas terras de trabalho, como de fato o foram, para que nelas fossem abertas grandes pastagens. Muitos deles acabaram migrando para as cidades da própria região, para viver na miséria da subocupação e das favelas. As novas atividades econômicas instauraram o grande latifúndio moderno, vinculado a poderosos conglomerados econômicos nacionais e estrangeiros (Martins, 2009, p.75).

A condição de pobreza expressa nas atividades rurais, delimitada a partir das complexas relações de trabalho assalariado e combinada com a expulsão dos posseiros (camponeses) de suas terras, estruturaram e, ainda, estruturam a reprodução do capitalismo no campo, que por sua vez apresenta dinâmicas que entrelaçam os espaços, urbano e rural.

[...] formas pretéritas de exploração de trabalho, em que a acumulação capitalista se estabelece na sua forma primitiva, nas cidades coexistem espaços de miséria, mas também de riqueza, de serviços especializados, tecnologicamente avançados, signos da modernidade, símbolos do progresso econômico advindo do agronegócio (Xavier, 2012, p. 32).

À medida que a pobreza rural se estabelecia, a partir da modificação da estrutura capitalista, com a expansão da empresa capitalista no campo, Ianni (2004, p. 234) afirma que “a agricultura brasileira adquiriu uma conotação capitalista mais profunda e generalizada”. A conotação capitalista no campo pode ser vista ao lado do crescimento urbano, nesse sentido Oliveira (1981, p. 86) acrescenta que, no Centro-Sul, as “zonas de pecuária extensiva, com alta concentração fundiária e uma recriação do binômio latifúndio-minifúndio dedicado agora à pecuária leiteira”.

A concentração da propriedade da terra só foi possível, principalmente, graças a apropriação por meios fraudulentos como a grilagem, além dos incentivos governamentais e a manutenção da exploração do trabalho livre, ora vista na forma de arrendamento, ora na camaradagem ou mesmo nos trabalhos de volantes e peões, formas essas que delimitaram a pobreza e a miséria como pertencente à vida dos trabalhadores no campo. No entanto, tais relações não foram estabelecidas sem lutas e descontentamento. Os conflitos e a exploração no campo foram motivos suficientes para os trabalhadores se organizarem e se expressarem em organizações camponesas e movimentos sociais.

3. A resistência: os movimentos sociais no campo e as organizações camponesas

Tal concentração da propriedade da terra não foi um processo pacífico, pois, durante todo o decorrer do século XX ocorreram lutas referentes a posse e ao uso da terra, envolvendo tanto posseiros que reivindicavam o direito da posse da terra, quanto grandes empresas que buscavam expandir sua produção. No caso específico do centro-oeste brasileiro Maciel (2007, p. 08) destaca, justamente, esse processo de ocupação que ocorre una região do Araguaia, “a ocupação deu-se por duas vias: de uma parte, por levas de agricultores pobres, vindos de diversas regiões brasileiras; de outro, por fazendeiros estabelecidos em terras recém adquiridas”, ressalva-se que esse processo descrito culminou em conflitos de posseiros, peões, indígenas contra os proprietários que ali se instalaram.

A expansão do capital e, por sua vez, das fazendas nas terras vazias, como foi observado, direcionou grande parte dos conflitos na complexa situação da fronteira. Assim, a situação da fronteira surge como

expressão de uma complicada combinação de tempos históricos em processos sociais que recriam formas arcaicas de dominação e formas arcaicas de reprodução ampliada do capital, como a escravidão, bases da violência que a caracteriza. As formas arcaicas ganham vida e consistência por meio de cenários de modernização e, concretamente, pela forma dominante da acumulação capitalista, racional e moderna (Martins, 2009, p.12-13).

A definição de fronteira, portanto, é apresentada a partir da complexa situação que a compõe.Observa-se que há, em um mesmo território, diversas representações e situações que criam um campo de conflitos. De acordo com Martins (2009), isso ocorre porque

Na fronteira, o camponês ainda vive relações econômicas, concepções de mundo e de vida centradas na família e na comunidade rural, que persistem adaptadas e atualizadas desde tempos pré-capitalistas. Ele, que ainda está mergulhado na realidade de relações sociais que sobrevivem do período colonial, se desdobre confrontando com formas tecnologicamente avançadas de atividade econômica, do mundo do satélite, do computador, da alta tecnologia. E subjugando por formas de poder e de justiça que pautam por códigos e interesses completamente distanciados de sua realidade aparentemente simples, que mesclam diabolicamente o poder pessoal do latifundiário e as formas puramente rituais de justiça constitucional. (Martins, 2009, p.13)

Assim, em contextos e em regiões diferentes apresentaram-se alguns dos movimentos sociais que “expressaram diferentes aspectos dessas lutas, desde há muito tempo: Canudos, Juazeiro, Contestado, Trombas e Formoso, Santa Fé do Sul, Oeste Paranaense, Nonoai, Sul do Pará, Rondônia e outros, em diferentes partes da sociedade agrária” (Ianni, 2004, p. 251-252). Desse modo, faz-se necessário observar alguns dos movimentos sociais no campo e seus respectivos contextos, agentes e objetivos.

Um dos fenômenos que surgiu entre as comunidades de camponeses foram as concepções milenaristas, que estiveram vivas no decorrer do século XX. Para Martins (2009), muitos desses movimentos – milenaristas e messiânicos – faziam parte da frente de expansão ou em bolsões de tradicionalismo, nesse caso o contexto em que viviam esses camponeses era parecido com o goiano, grande parte dos camponeses sofriam pressões para abandonar suas terras, isso quando não eram expulsos da terra.

Esses movimentos rurais, milenaristas e messiânicos, surgiram a partir da tradição religiosa “rústica”, a qual professa a renovação da terra como uma promessa divina.

[...] o catolicismo popular brasileiro, de um modo geral, e em sua modalidade rústica, em particular, tem suas raízes mais importantes plantadas no solo da Grande Tradição judaico-cristã, onde sobressaem, às vezes contraditoriamente, a esperança messiânica do Reino de Deus numa terra renovada, e as expectativas de uma expiração individual (Monteiro, 1977, p. 41).

Esses movimentos, segundo o autor,  inserem-se no momento em que transformações sociais, políticas e econômicas ocorreram, antes mesmo da instauração da República, e que se manifestou de forma mais complexa durante a República (até os dias atuais), com a crise do mandonismo tradicional e com a incidência do coronelismo. Assim, o mítico ganhava destaque contrapondo à difícil realidade do camponês:

Em diferentes pontos de uma extensão de cerca de oitocentos quilômetros ao longo do rio Araguaia, encontrei diversos grupos de camponeses que chegaram à região inspirados pelas profecias do padre Cícero sobre a existência de um lugar mítico depois da travessia do grande rio. [...] o lugar seria reconhecido quando fosse encontrado, por ser um lugar de refrigério, de águas abundantes, de terras livres, em contraste com o Nordeste árido e latifundiário(Martins, 2009, p. 164).

Esse movimento migratório motivado pela crença na existência de um lugar sagrado, baseado nos antigos movimentos ocorridos em alguns países da Europa, ocorreram a medida em que seus mundos desabaram, num processo em que “irromperam no curso de uma história dramática de submissão para trilhar os caminhos da rebeldia sem projeto, ou seguir as vias místicas que lhes eram dadas, ousando assumir a condição de sujeitos” (Monteiro, 1977, p.43).

Nesse contexto, pode-se observar algumas figuras missionárias importantes no país, em Monteiro (1977) observa-se que além dos movimentos ocorridos no sertão brasileiro, como em Juazeiro e Canudos, destaca-se também o Contestado, que se ascendeu disputas pela posse da terra, no contexto de coronelismo e caudilhismo. As figuras dos beatos, típicas do sertão, também se faziam presentes no território catarinense, assim registrou-se o aparecimento de três monges, que lideraram os conflitos da região. Destaca-se aquino sertão nordestino, que nortearam grandes levas de camponeses a mudar seu destino, ora resistindo (contra a modernização e a exploração), ora buscando novos lugares para se instalarem (contrapondo-se a seca, a pobreza, aos latifúndios).  Assim, observa-se exemplos como o de Padre Cícero que, em Juazeiro, tornou-se importante figura política na República Velha, atuando entre os coronéis, e importante figura religiosa, com muitos seguidores, ficou conhecido pelas visões e pelos milagres. Para Monteiro (1997), apesar de ser uma figura religiosa, o padre tinha uma atuação quase herética, pois este havia conquistado a desconfiança do clero católico, de forma que perdeu a ordem e foi excomungado.

Outra personalidade de destaque é Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antônio Conselheiro, o beato ficou conhecido a partir de sua posição religiosa e política. A partir de 1870, pregou em diversos estados do sertão, mas suas pregações logo manifestaram tensões com os representantes da Igreja e do Estado. Essas tensões se intensificaram quando Conselheiro se posicionou contra a cobrança dos impostos no município de Bom Conselho, na Bahia. Além dos impostos, o beato mantinha uma posição contra a República, que havia se instalado no país, considerava-a como opressora da Igreja. Monteiro (1997, p. 66) observou que a atuação do beato tinha como base uma “rebeldia conservadora”, pois este defendia a permanência da monarquia. A maior expressão da influência do beato na vida dos sertanejos se deu na criação do povoado de Belo Monte, denominado Canudos.

A fixação de Canudos – fazenda abandonada, junto ao Vaza-Barris – fez-se por esta época, vindo a alcançar o arraial, em seu curto período de existência, dimensões inusitadas no sertão. Para lá afluíram sertanejos de vários estados que, desfazendo-se de seus haveres, abandonavam os lugares de origem e iam engrossar as fileiras daquele que, então, já era o Conselheiro (Monteiro, 1977, p. 60).

Após três investidas, sem sucesso, das forças policiais contra o grupo do beato, foi designada, em 1897, uma poderosa tropa de guerra para destruir Canudos. Conforme Monteiro (1977), as lutas iniciaram-se em junho e terminaram em agosto, com mais de 2 mil mortos, o fim da guerra resultou na destruição da cidadela e na eliminação de seus defensores, com a degolação dos prisioneiros que restaram após o combate.

Tais representações místicas entre os camponeses, a partir de uma tradição religiosa rústica deu uma importante base para a atuação dos movimentos sociais no país. No entanto, nem todos os movimentos sociais no campo que se apresentaram no país foram influenciados pelo messianismo. Assim, diversas organizações camponesas surgiram na forma de sindicatos rurais e ligas camponesas em diversos lugares do país.

Em Goiás, a primeira manifestação de organização camponesa se deu logo após as frentes pioneiras terem se instalado “na região sul-sudeste do estado com a construção da estrada de ferro” (Souza, 2006, p. 105), nas primeiras décadas do século XX. Observa-se que as frentes de expansão e as frentes pioneiras se misturam a medida em que se instalam no processo de expansão do capital, “práticas de violência nas relações de trabalho, como a escravidão por dívida, próprias da história da frente de expansão, são adotadas sem dificuldade por modernas empresas da frente pioneira” (Martins, 2009, p.149).

Dessa forma, com o sistema de arrendamento, a luta pela terra objetivava baixar o valor da renda da terra, iniciou-se com a adesão de poucos homens, depois contou com o apoio do Partido Comunista do Brasil (PCB), o qual estimulou a criação de ligas camponesas, que durou de 1948 até 1952. O conflito foi apaziguado pelas forças repressivas do governo, alguns camponeses abandonaram as terras e foram para o norte do estado, ocupar as terras devolutas de Trombas e Formoso. Nesse caso observou-se o deslocamento da frente de expansão a procura de novas terras. Este movimento é característico dos camponeses, que são na maioria dos casos expulsos de suas terras, que vivem numa “estrutura social intensamente mediada pela migração e pela ocupação temporária, ainda que duradora” (Martins, 2009, p. 150).

No mesmo ano, em Formoso e Trombas será criado, nas palavras de Souza (2006), “o mais longo movimento camponês de Goiás”.  As terras devolutas localizadas no norte de Goiás ganharam destaque à medida em que o planejamento público se voltou a concretizar políticas voltadas a dinâmica das regiões do país interligando-as, a Transbrasiliana, década de 1950, foi exemplo disso. Tais medidas contribuíram para que fazendeiros expandissem seus domínios, obtendo a propriedade da terra por meio da grilagem. Os fazendeiros que recorreram a posse da terra e a expulsão dos camponeses logo encontraram resistência armada dos camponeses que tinham títulos provisórios das terras. José Porfírio ficou conhecido como um dos líderes do movimento, o Partido Comunista Brasileiro também entrou na organização do movimento.

A organização camponesa que seguiu com conflito, mesmo com as intervenções violentas praticadas por parte de jagunços e policiais, alcançou posições (a nível nacional) favoráveis e contrárias à medida que ficava conhecido. Assim, “em 1963, no auge da disputa pelo aliciamento dos trabalhadores rurais, estruturaram-se na região a Associação dos Lavradores de Trombas e Formoso, doze ligas camponesas, várias assembleias de córrego” (Souza, 2006, p. 109), dessa forma, conseguiram com o governo, representado pela figura de Mauro Borges, a emissão de títulos aos posseiros da região. Mas, com o golpe de 1964, as organizações camponesas sofreram novamente forte repressão, a violência por parte do governo prevaleceu na disputa e os camponeses e suas lideranças foram alvo dos militares que os prenderam e os torturaram.

4. Considerações finais

A questão agrária no Brasil é o reflexo do ‘campo’ de lutas. Um campo que se configurou, durante o século XX, a partir de complexas relações, sociais e econômicas. Essas relações apresentaram-se, muitas vezes, de forma descontínua e desigual, revestida segundo Martins (1986) de uma linearidade utópica.

Destaca-se, nesse campo, os seguintes protagonistas: o camponês, que partilhando com as dificuldades impostas pela concentração da propriedade da terra e a pobreza rural, fizeram da resistência e/ou da migração, o meio de sobrevivência; e o grande proprietário, que por meio das grandes extensões de terra, obtidas muitas vezes com a expulsão do camponês do campo para a cidade, ou, para outras terras, monopolizou os meios de produção, tornando os camponeses em assalariados. Ainda se destaca nesse processo o papel do Estado que, no intuito de desenvolver a economia nacional, apoiou a introdução do grande capital no campo, expulsando das terras os indígenas e pequenos trabalhadores rurais.

Assim, observa-se que o direito à posse da terra foi o objetivo de tais protagonistas. E, que a forma como a ocupação da terra se deu ao longo dos anos – destacando novamente a pobreza dos camponeses, muitos deles expulsos de suas terras e pelo crescimento de grandes latifúndios, nos preceitos capitalistas – foi o ponto de partida para o desenvolvimento de tais movimentos sociais no campo. Nesse sentido, as lutas se manifestaram em diversas regiões do país, a partir de organizações camponesas e movimentos sociais no campo, expressos nas Ligas Camponesas, nos sindicatos rurais, nos movimentos messiânicos e no banditismo social. Além dessas organizações, destacam-se o papel da Igreja, com as Comissões Pastorais da Terra; alguns órgãos governamentais e partidos políticos, como o Partido Comunista do Brasil (PCB).

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1. Mestranda do programa Territórios e Expressões Culturais no Cerrado/TECCEER, Universidade Estadual de Goiás. Email: daninevesb@gmail.com

2. Doutora, docente do programa Territórios e Expressões Culturais no Cerrado/TECCEER, Universidade Estadual de Goiás. Email: jnsluz@hotmail.com


Revista ESPACIOS. ISSN 0798 1015
Vol. 38 (Nº 07) Año 2017

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