Espacios. Vol. 37 (Nº 21) Año 2016. Pág. 3

Teoria social contemporânea e materialismo dialético

Contemporary social theory and dialectical materialism

Glauber Lopes XAVIER 1

Recibido: 14/03/16 • Aprobado: 02/04/2016


Conteúdo

1. Breve introdução

2. O materialismo dialético e a teoria social clássica

3. A teoria social contemporânea, suas antinomias e o materialismo dialético

4. Das considerações finais

Referências bibliográficas


RESUMO:

O propósito do artigo é problematizar as contribuições da teoria social contemporânea à luz do materialismo dialético, método que foi desenvolvido no bojo da teoria marxista. Para tanto, promove o confronto entre os aportes teórico-metodológicos de diversos pensadores contemporâneos, como Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Erving Goffman, dentre outros, e o pensamento marxista a partir dos postulados do filósofo e sociólogo marxista francês Henri Lefebvre. Encontra-se fragmentado em três momentos, sendo que após uma breve introdução, é realizada uma discussão sobre a teoria social clássica e as principais antinomias das ciências sociais, seguida da problematização das principais correntes metodológicas no âmbito das teorias sociais contemporâneas.
Palavras-chave: Teoria social. Materialismo dialético. Henri Lefebvre. Epistemologia.

ABSTRACT:

The objective of this article is to discuss the contributions of contemporary social theory through dialectical materialism, a method that was developed by Marxist theory. For this, confront theories and methodologies of many contemporary thinkers such as Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Erving Goffman, among others, the marxist thought from the philosopher of thought and French Marxist sociologist Henri Lefebvre . You are fragmented into three stages, first a brief introduction, it is then held a discussion of the classical social theory and key antinomies of social sciences, followed by questioning of the main methodological currents in the context of contemporary social theories.
Keywords: Social theory. Dialectical materialism. Henri Lefebvre. Epistemology.

1. Breve introdução

Pretende-se, por meio deste artigo, a compreensão crítica dos postulados de proeminentes pensadores da teoria social contemporânea. Em que pese um ponto de condução, as antinomias que persistem nas diversas contribuições são tomadas como mecanismo de análise das múltiplas correntes e concepções teóricas. São as seguintes estas antinomias: individuo x sociedade, estrutura x ação, objetividade x subjetividade, mudança x reprodução, determinismo (evolucionismo) x contingência, interação social x interação face a face e macro-análise x micro-análise. Ademais, esse exercício crítico será realizado em permanente embate entre as concepções teóricas contemporâneas e o materialismo dialético a partir das contribuições do filósofo e sociólogo marxista francês Henri Lefebvre. Com efeito, entende-se aqui que o materialismo dialético trata-se do método que permite uma compreensão da realidade fundada na totalidade do pensamento e, portanto, exclusivo do ponto de vista da ruptura com o estruturalismo na superação das referidas antinomias.

Neste artigo, são elaborados breves comentários acerca dessas correntes, sendo que a grande questão que fica posta é àquela que concerne o método. Disso, é proveniente uma construção de pensamento que contrapõe o estruturalismo ao materialismo dialético, a lógica formal à lógica dialética, de tal sorte que teoria e empiria devem se imbricar num projeto de elaboração de uma teoria social. Não por acaso Henri Lefebvre, em cujo pensamento se sustenta as reflexões acerca do materialismo dialético, abandona, se é que seja este o termo ideal, a filosofia e ampara-se na sociologia e em outros campos do conhecimento, como a história e a geografia, a fim de elucidar a sociedade contemporânea numa perspectiva marxista.

Obviamente que o método permeia toda a construção teórica. Por seu turno, recaem sobre a teoria as incoerências que o sustentam. Nesse sentido, não é possível apreender as contradições da sociedade contemporânea tomando-a, metodologicamente, a partir da ação social ou da estrutura social pura e simplesmente. Isso significa que é preciso, sempre, revisitar os clássicos do pensamento social a fim de que as teorias sociais contemporâneas possam ser permanentemente aperfeiçoadas e que possam primar pela totalidade na apreensão dos fenômenos e dos processos sociais que marcam o mundo hodierno.

2. O materialismo dialético e a teoria social clássica

Max Weber (2006) não empreendera sua pesquisa acerca das religiões tendo desconsiderado o desenvolvimento do capitalismo naquele contexto. Tampouco Durkheim (1999) o fizera quando seu objetivo consistia em compreender a organização da sociedade.  Pelo contrário, apelou para uma questão, de certo modo simples, para alçar reflexões de caráter sócio-histórico. Baseou-se na divisão do trabalho e compreendeu questões de ordem moral da vida em sociedade. Brilhantemente, Marx (2006) também conseguira superar àquelas vertentes de pensamento orientadas pelo positivismo, o idealismo e o materialismo contemplativo e não se ateve as questões de método. Ao avançar o hegelianismo, formulou conceitos e categorias que coadunam ação social e estrutura social, objetivismo e subjetivismo. Com maestria, Marx conduziu sua discussão para a arena da práxis, atestando a fertilidade de seu pensamento, a noção de totalidade.

Tudo leva a crer que o pensamento social clássico, em boa medida, supera o pensamento social contemporâneo no que se refere ao alcance de seus postulados. Por um motivo especial: a concepção de sociedade e de ser social. Por outras palavras, o caráter epistemológico da própria teoria social. De um ponto de vista crítico, como deve se comportar àquele que intenta a compreensão científica, é pertinente afirmar que assim como os demais campos do saber, as ciências humanas e, nesse caso, as ciências sociais, sofrera as conseqüências da divisão parcelaria do conhecimento. Isso, evidentemente, redunda no método, na apreensão da realidade, enfim, na ciência enquanto conjunto de teoremas, leis, teorias, tratados, isto é, concepções do real a partir de inúmeros esforços alicerçados sob determinados princípios. Segundo elucida Xavier (2012, p. 23):

No bojo da cosmovisão dialético-materialista da história, o que há de essencial é o comportamento dinâmico entre sujeito e objeto, pesquisador e o que é pesquisado. Nessa dinâmica residem as contradições que emanam da prática, do concreto. Por isso, o principio da dialética que considera ativo o papel do sujeito histórico é válido à ciência. Significa pensá-la como produto e instrumento de determinados interesses, como atestam a especialização das tarefas requeridas pelo mundo do trabalho ou ainda a tomada de decisões por indivíduos que se julgam portadores do conhecimento científico e, portanto, da técnica e da imparcialidade, quando na verdade instrumentalizam a ciência para fins específicos de restritos grupos detentores do poder político e econômico. Nisso fundamentam as críticas de Henri Lefebvre (1969) aos tecnocratas.

Resgatando clássicos da teoria social, a obra O Suicídio, de Émile Durkheim (2005) fornece provas de uma ciência multiplamente orientada. Durkheim aborda, ali, questões de ordem climática, geográfica, psicológica e econômica, por exemplo. A isso se deve a riqueza de seus escritos, como os de Weber e Marx. O parcelamento do conhecimento, em muito, empobrece a apreensão das coisas. Evidentemente que muitos autores contemporâneos primam pela multiplicidade temática em suas abordagens, basta considerar a diversidade de assuntos tratados por Pierre Bourdieu e por Jürgen Habermas, por exemplo.

Contudo, há não somente nesses autores, como em vários outros, limitações do ponto de vista do método. É sabido que no tempo dos autores clássicos as Ciências Sociais arvoravam o estatuto científico. No entanto, se atualmente ela possui sólidos pilares teórico-metodológicos sob os quais se assenta, não se deve a isso a limitação dos atuais estudos, mas a uma realidade ensejada pela natureza do capital. A ciência é dinâmica e sobre ela interferem os benéficos e, sobremaneira, os maléficos efeitos do capital.

Não é dito aqui, e não se espera compreensão subliminar, de que os pensadores da teoria social contemporânea propõem seus estudos conforme os ditames do capital. Mas é inegável que a ciência, muitas vezes, é refém desses ditames. Resistências ocorrem, obviamente, e não são poucas. Pensadores contemporâneos como Bourdieu e Giddens manifestaram preocupações quanto aos efeitos perversos da chamada globalização ou mundialização do capital.  Contudo, a grande interferência é do ponto de vista do método, do campo de análise, da orientação dos estudos, da limitação, da restrição. Ou o individualismo metodológico fora exacerbado, a ponto de restringi-lo a ação social, o que não é coerente com a perspectiva weberiana, ou o mesmo fora a perspectiva marxista de totalidade, promovendo incoerências sérias e irresponsáveis acerca dos postulados de Karl Marx, os ideologizando, dogmatizando e instrumentalizando equivocadamente.

3. A teoria social contemporânea, suas antinomias e o materialismo dialético

3.1. Talcott Parsons e Robert Merton: A compreensão de um sistema

É nos clássicos que Parsons (1974) e Merton (1970) buscarão categorias de análise para a compreensão do sistema da sociedade moderna. Parsons recorre a Weber a fim de discutir o sistema de ação social e seus quatro subsistemas: manutenção de padrão, integração, realização de objetivo e adaptação, sendo que esses subsistemas de ação são colocados em prática a partir dos chamados componentes estruturais: normas, valores, coletividades e papéis. Merton, por sua vez, aborda as ações dos indivíduos tomando por pressuposto condutas coletivamente orientadas a partir de alguns tipos básicos de adaptação: conformidade, inovação, ritualismo, retraimento e rebelião. Discute, ademais, o descompasso entre as estruturas sociais e culturais e, em decorrência, o estado de anomia social, no sentido de que essa anomia tem sido controlada por um sistema social moderno, cujas ações pautam-se por ações sociais com fins claros e específicos.

Parsons e Merton recorreram a Weber e a Durheim, é louvável. Não o é o modo como fizeram, vez que intencionaram a compreensão do sistema das sociedades modernas categorizando simplesmente.  Poder-se-ia dizer que ambos elaboraram um bojo de categorias e conceitos tão somente e, para isso, negligenciaram preceitos essenciais aos clássicos, como o funcionamento da sociedade do ponto de vista econômico, social, político e religioso. Enfim, estruturaram a sociedade a partir de uma reflexão que desconsiderou suas contradições. Numa assertiva de Marx (2003), "estudaram as coisas da lógica e não a lógica das coisas".

3.2. Anthony Giddens e Pierre Bourdieu: um apetrechado arranjo de idéias

Entre o pensamento de Giddens e o pensamento de Bourdieu há uma similaridade determinante, ou seja, àquilo que coloca em crítica toda a construção teórica do primeiro se repete no segundo: um apetrechado arranjo de idéias. Em seu pensamento, Anthony Giddens (2003) apresenta as origens do processo de consolidação de uma Ciência humana e, especificamente, das Ciências Sociais. Para tanto, apresenta a oposição existente entre abordagens metodológicas funcionalistas e estruturalistas daquelas subjetivas, ancoradas num pensamento hermenêutico. Foi um grande filósofo francês, Jean Paul Sartre (1966), que na obra Questão de método apresentou a exegese da consolidação do pensamento das humanidades em forma de método, ou seja, enquanto idéia reguladora, arma social e universalmente representada. Sartre discute aspectos levantados por Giddens (2003), como a perspectiva fenomenológica e a apreensão das ações dos sujeitos históricos.

Acompanhando uma inquietação que induziu vários sociólogos contemporâneos, Giddens (2003) fundamenta sua teoria da estruturação a partir da tentativa de conceber um pensamento assentado na relação sociedade-indivíduo, em busca da superação da antinomia que há entre estas categorias. O autor aborda as ações dos sujeitos, remetendo tal discussão aos escritos de Goffman. Elabora uma teoria com base nas ações dos agentes enquanto cognoscentes, por isso, tanto discute àquilo que perfilou muitos escritos filosóficos, as motivações e as intencionalidades. Nesse aspecto, é viável uma comparação com a proposição dessa teoria por parte de Giddens com aquela Bourdieana.

Ambas partem do fato de que as ações individuais não são provenientes, necessariamente, de estruturas rigidamente estabelecidas e que, portanto, orientadoras que são dos comportamentos, induzem a ações preconcebidas e reduzidas a coerções sociais. No entanto, o que as distingue, essencialmente, é o fato de que a proposta de Giddens (2003) é elaborada a partir de teorias que imiscuem pelo interacionismo simbólico e mesmo o cotidiano para, então, alcançarem elementos estruturais (não na acepção clássica do termo), enquanto que a proposta de Bourdieu (1983, 1996) parte da construção de uma estrutura para, então, dimensionar as ações dos indivíduos, o que fica posta nos conceitos de campo social, agentes e habitus.

Em Pierre Bourdieu (1983, 1996), as ações materializam-se conforme disposições, sendo que estas disposições configuram-se em hábitus que distinguem os indivíduos, seja pelo capital social, político, cultural ou mesmo econômico. É fato que, tanto Giddens (1991), quanto Bourdieu (1997) elegem tempo e espaço como categorias fundamentais de análise. No entanto, àquele, estas categorias não possuem a mesma representação que a este, considerando que o pensamento de Bourdieu é, de certo modo, além de mais crítico, mais avançado na tentativa de interpenetrar ações e estruturas, como prova a postulação de uma teoria que expõe o poder e sua relação com o tempo de acesso e o espaço que, igualmente, distancia em efeitos de lugar.

Portanto, é da conflituosa relação, motivo de polêmica, entre o objetivismo e o subjetivismo que Bourdieu realiza suas reflexões. Em termos escolásticos essa oposição se apresenta entre o positivismo e o estruturalismo, tidos numa perspectiva objetivista, e o interacionismo simbólico e a etnometodologia, consubstanciados que estão pela apreensão do fenomênico, tidos como subjetivistas. Em que consiste o apetrecho de idéias tanto em Giddens quanto em Bourdieu? Na incompletude da abordagem, onde, segundo Lefebvre (2000, p. 228), "Os trabalhos dos mais bem apetrechados sociólogos profissionais ficam a meio caminho do conceito considerado. Assim acontece com Bourdieu e Passerom em Les héritiers, e mesmo na Reproduction." Prossegue suas críticas afirmando que ambos os teóricos examinam o recrutamento do pessoal dirigente na sociedade burguesa e que, por isso, não avançam senão, incompletamente, da reprodução dos meios de produção, meios de que os agentes da produção fazem parte. (LEFEBVRE, 2000).

3.3. O Interacionismo simbólico e o exacerbado exercício do individualismo metodológico

Neste momento, as categorias de Erving Goffman e a escola do Interacionismo simbólico, bem como a etnometodologia, serão temas de breve discussão. Para Goffman (1988), é fundamental considerar que as ações sociais orientam-se segundo ações de outrem na interação social. Fica posto, portanto, o ponto nevrálgico do interacionismo simbólico: a interação social. Aparentemente, a tentativa de superação da antinomia entre interação social e interação face a face é particular aos teóricos da escolástica do estruturalismo, até mesmo porque são recentes as proposições teóricas que centram, na interação face a face, as perspectivas de compreensão da sociedade.

Segundo Goffman (1988), para quem a interação social alude a uma teatralização da vida, os indivíduos se comportam de formas diversas, conforme as ocasiões. Sua tese é empiricamente apresentada na obra Estigma, na qual aponta as estratégias manipuladoras das identidades deterioradas por parte dos desacreditados ou dos desacreditáveis, devido aos estigmas que possuem. É interessante correlacionar as discussões de Goffman com o estudo de Becker (1991) que trata dos usuários de maconha. Quando o segundo autor demonstra que o uso da droga exige o cumprimento de etapas e, portanto, o aprendizado de determinadas habilidades, além do que é fundamental, a companhia de demais usuários na obtenção do prazer, confirma, por outras palavras, preceitos do interacionismo simbólico.

É esta interação entre usuários fundamental, seja para execução das ações ou mesmo compartilhamento de conhecimentos, o que não deixa de ser ação social e que reporta a um ramo ainda mais peculiar dos estudos sociológicos, a etnometodologia. Quanto aos postulados de Goffman, resta dizer que não superam a antinomia indivíduo x sociedade, talvez a de estrutura x ação, ao demonstrar que indivíduos agem segundo certos comportamentos que são socialmente estabelecidos, ou melhor, aceitos, rotinizados e, em certos casos, naturalizados, a concepção de que indivíduos são limitados a certas tarefas pela sua condição física é prova disso e mais prova há, compreendendo que, a depender do comportamento desse indivíduo, os demais agirão dessa ou daquela forma.

Quanto à etnometodologia, trata-se de uma ousada proposta de pensamento, a despeito da pretensão de se enquadrar como mais uma escola da teoria social contemporânea. A etnometodologia, cujo termo foi cunhado pela primeira vez por Harold Garfinkel (1996), propõe a análise das condições pelas quais determinados fatos tenham ocorrido e não pelo fato em si enquanto coisa, como concebeu Émile Durkheim nas regras do método sociológico. Conforme elucida Garfinkel (1967, p. 36): "As a topic and methodological ground for sociological inquiries, the definition of the common sense world of everyday life, though it is appropriately a project of sociological inquiry, has been neglected."  Assim, há uma tênue fronteira entre a etnometodologia e o senso comum, entendendo que os participantes da ação social agem a partir de conhecimentos compartilhados e, por eles, tomados enquanto verdadeiros.

Mais que apenas permitir a compreensão de condutas rotineiras de sujeitos que compartilham mesmas práticas culturais, a etnometodologia consiste numa forma bastante profunda e, ao mesmo tempo complexa de se obter o sentido das coisas, do saber local, das ações daqueles indivíduos considerados subalternos, das práticas cotidianas nos processos de trabalho e naquilo que se considera como crucial para a construção do saber, a busca pelo conhecimento. É nesse aspecto que as ciências sociais deve considerar os postulados teórico-metodológicos dispostos na etnometodologia.

Todavia, assim como o próprio Interacionismo simbólico, as abordagens etnometodológica não primaram pela apreensão das estruturas sociais, desconsiderando, por exemplo, categorias essenciais de análise, como o poder. Reclusas que ficam na perspectiva da ação social, não avançam da micro-análise, embora à etnometodologia seja possível a contestação de falsas contingências, pressupostas enquanto parâmetros de análise sociológica. De modo geral, tanto o interacionismo simbólico, quanto a etnometodologia exacerbaram o individualismo metodológico. Ainda que ambas correntes tenham se arvorado a partir da ação social, tomaram-na por incompleta na acepção weberiana do termo. Exacerbaram o individualismo metodológico na medida em que não o vinculou a constructos sociais encetados pelo capital, pela religião, pela cultura.

3.4. Norbert Elias: a longa duração como recorte temporal

Elias trabalha com a longa duração, talvez tenha sido, dentre os autores abordados, aquele que mais confere à história um campo epistemológico fértil para a análise social. O estudioso alemão não limitou suas obras apenas na compreensão da microanálise, pois que avançou neste paradigma quando da reflexão acerca da sociedade européia a partir da arte.

É admirável a capacidade de Elias na captura, tanto de questões que envolvem eminentemente a ação social, como em Os estabelecidos e os outsiders (2000), quanto na retenção dos processos sócio-históricos, confirmada em O processo civilizador (1994). Ousa-se afirmar que, em Os estabelecidos e os outsiders, Elias lança mão, ainda que sutilmente, de uma compreensão simbolicamente interacionista e, porque não, da etnometodologia quando da apreensão dos comportamentos de crianças a partir da convivência com os pais. Soma-se a isso o fato de que, em O processo civilizador, consegue com maestria apreender transformações sociais, portanto, estruturais, a partir dos costumes e de outras questões.

Contudo, o autor deixara por desmerecidas questões ligadas a ordem material. Norbert Elias enfatizara a cultura, a civilização, os costumes em detrimento da análise de algo determinante que, inclusive, coloca em discussão muito do que escrevera: a condição material de vida. A arte que escrevera em A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor (2005), bem comoos costumes retratados em O processo civilizador (1994), todos, podem ser compreendidos a partir das condições materiais de vida, dos processos históricos, aspectos que o método não pode relegar ao segundo plano. Conforme Lefebvre (1983, p. 88): "A lógica se funda sobre a história, na medida mesmo em que a história aparece como inteligível."

3.5. Jürgen Habermas: Limitações na concepção da linguagem

Habermas é outro teórico contemporâneo que, comparado aos demais, de certo modo avança nas dicotomias que tomam a teoria social contemporânea. Na postulação de uma teoria da ação comunicativa, o autor alemão promove um encontro, ainda que conflituosos, entre as perspectivas do indivíduo e da sociedade, bem como da estrutura e da ação, quando da compreensão de que a partir da verdadeira comunicação entre os indivíduos, o que pressupõe características bem delineadas por Habermas, é possível a construção de um campo de comunicação a fim de que os atores sociais envolvidos possam entrar em consenso. Evidentemente que tal consenso se estabelece não pela imposição, mas pelo convencimento. "Os atores participantes tentam definir cooperativamente os seus planos de ação, levando em conta uns aos outros, no horizonte de um mundo da vida compartilhado e na base de interpretações comuns da situação." (HABERMAS, 1990, p. 72).

Habermas, por outro lado, não se furtou da necessidade em tematizar a ideologia, como fazem muitos autores pela precaução em não imiscuírem suas discussões por caminhos impregnados pelo senso comum. Nesse aspecto, há enorme similaridade entre seu pensamento e àquele de Henri Lefebvre. Quando Habermas (1993) discute a ideologia tecnocrática, ele leva para o campo das ideias algo que Lefebvre tematiza a partir do campo da práxis, da representação da tecnocracia nos meandros do poder estatal. Nesse sentido, o pensamento de Habermas é extremamente frutífero, posto que crítico e propositivo. Contudo, deixa lacunas no que tange a possibilidade de criação dos campos de efetivo diálogo, ou mesmo de suas representações. A linguagem consiste em uma das esferas da existência humana, conforme Marx e Engels (2006, p. 56): "a linguagem é a consciência real, prática, que existe também para os outros homens e que, assim existe igualmente para mim; e a linguagem surge como a consciência da incompletude, da necessidade dos intercâmbios com os outros homens".  

Portanto, que a linguagem é elementar à sobrevivência da espécie humana e por meio dela a reprodução da vida é possível, é algo indiscutível. Contudo, ainda que tenha tomado a linguagem diferentemente de sua acepção em Suassure, Habermas a considerou mais como instrumento em si do que como instrumento de A ou B. Não concebeu o embate de interesses a partir de uma sociedade de classes. O uso da linguagem, nesse sentido, torna-se ineficaz. A criação de um campo de diálogo efetivamente igualitário pressupõe a igualdade em outros termos. Habermas inverteu, pode-se afirmar, o verdadeiro problema.

A descolonização do mundo da vida não é possível pela comunicação, mas pela efetiva revolução. O pensamento habermasiano enjaula-se quando se imiscui pela apreensão de uma das esferas nas quais o poder se estabelece. Ausenta-lhe uma proposta, efetiva, de transformação das condições sociais contemporâneas na medida em que, nele, é permanente a reflexão do diálogo como centralidade nos movimentos de embate de classes e disputas de interesses. À contramão do pensamento marxista, o pensamento de Habermas (1997) persiste naquilo que o primeiro nega: a consagração do estado e do direito existentes. (LEFEBVRE, 1968).

4. Das considerações finais

As principais antinomias que ocupam a epistemologia das Ciências Sociais resultam da primazia ocupada ora pela estrutura, ora pela ação, assim como ora pelo sujeito, ora pela coletividade. Tem-se que o materialismo dialético, pela própria natureza que subjaz o método, é capaz de fornecer instrumentos teóricos para a análise da sociedade sem que se possa recair nos equívocos recorrentes na teoria social contemporânea. Estes equívocos conduzem, por sua vez, a interpretações à contramão do movimento do conteúdo, uma vez que ao primarem pela forma, reservam o substrato das relações sociais ao segundo plano.

Doravante, legitimam análises muitas vezes desprovidas de conteúdos históricos, como aquelas que recaem no culturalismo e exacerbam ideologias. Ao não problematizá-las, reproduzem por seu turno o reino da aparência, sendo que o único método, exatamente por privilegiar a história com base nos conflitos que a ela são subjacentes, capaz de desvelar a essência por trás da aparência consiste no materialismo dialético. Ao partir das condições concretas, esse método permite que a abstração do real não seja produto de observações calcadas em relações fantasmagóricas, na medida em que esse real encontra-se fragmentado em classes sociais e é engendrado por meio de relações de poder cuja centralidade é o trabalho.

Nesse sentido, o artigo em questão buscou, ainda, evidenciar que o trabalho intelectual, assim como o trabalho manual, é refém da dinâmica de divisão social de tarefas, sendo que, no plano da teoria, esta tem imposto o parcelamento do conhecimento, impedindo que as análises atualmente levadas a cabo pela teoria social não tenham o devido alcance da totalidade dos fenômenos e processos sociais. Para tal esforço à um só tempo lógico, político e epistemológico, há que se restituir o materialismo dialético como método de investigação social no campo das ciências humanas e sociais, tendo como propósito a construção de um conhecimento que não apenas possa elucidar o real, mas que também possa de algum modo contribuir para a emancipação dos sujeitos históricos.

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1. Professor Adjunto da Universidade Estadual de Goiás. Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás. Email: glauber.xavier@ueg.br


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