Espacios. Vol. 37 (Nº 20) Año 2016. Pág. 15

Reflexões sobre práticas de ressocialização e alternatividades penais: Ações Privadas nas esferas de Políticas Públicas

Reflections on practice of resocialization and criminal alternatividades: Private actions in the spheres of public policy

João Francisco Sarno CARVALHO 1; Carlos Alberto Máximo PIMENTA 2; João Leandro Cássio de OLIVEIRA 3

Recibido: 13/03/16 • Aprobado: 11/04/2016


Conteúdo

Introdução

1. Marco Teórico

2. Processos de Ressocialização e Experiências de Pesquisa: sentimentos, sofrimentos, dores, dramas, arrependimentos, verdades e mentiras

3. Considerações Finais

Referências bibliográficas


RESUMO:

Este trabalho circunscreve-se ao tema "políticas públicas prisionais geridas pela iniciativa privada", a partir do processo de ressocialização de detentos realizado por uma associação no sul de Minas Gerais. Busca-se refletir sobre o caráter público deste tipo de alternativa penal, mesmo gerido pela iniciativa privada. Como orientação metodológica, realizou-se observação de campo com base em atividade interna de ressocialização ocorrida em 2014. Na sistematização dos dados, tomando como referência as falas dos voluntários, funcionários e detentos, demonstra-se que há valorização do trabalho aplicado pela associação. Contudo, não há clareza sobre a natureza pública contida neste modelo de trabalho.
Palavras-chave: Políticas Públicas, Desenvolvimento, Ressocialização, Tensões entre Público e Privado.

ABSTRACT:

This work was limited to "public prisons policies managed by private sector", from rehabilitation process of prisoners held by an association in Minas Gerais. The aim is to reflect upon the public nature of this type of criminal alternative, even if it is managed by private sector. A methodological orientation performed an observation based on activity of rehabilitation in August 2014. Recording data, taking reference of statements of volunteers, staff and inmates, has shown that there is appreciation of the work applied by the association. However, there is no clearness about the public nature contained in this working model.
Key-words: Public Policies. Development. Ressocialization. Tensions between Public and Private.

Introdução

Este trabalho circunscreve-se ao tema "políticas públicas prisionais geridas pela iniciativa privada", a partir do processo de ressocialização de detentos realizado por uma associação no sul de Minas Gerais, no Brasil.

Vê-se cada vez a participação privada nos termos dos novos rumos organizativos da sociedade brasileira. Há, conforme Pimenta e Alves (2010, p. 10-11), um crescente processo de minimização dos espaços de atuação do Estado, o que transfere para o setor privado um papel até então de competência, exclusiva, do Estado. É o caso da gestão de penitenciarias por Organizações Não Governamentais ou Associações.

O argumento, o qual dever ser questionado, é o de que o mercado desenvolveu instância de gestão com maior eficiência que o Estado, promovendo tensão entre as esferas do público e do privado na condução das responsabilidades estatais. A gestão dos procedimentos de ressocialização realizados pela Associação estudada ganha a condição de "modelo" de política pública prisional.

Circunscrito aos processos de intervenção na socialização (e/ou ressocialização) do detento é que esta proposição ganha relevância, no sentido de registrar os meandros desse emaranhado de intencionalidades que envolvem questões políticas, econômicas, religiosas, morais e simbólicas.

A pertinência da discussão se potencializa no seguinte questionamento: Em que se sustenta o trabalho de ressocialização da Associação gerenciado pela iniciativa privada? Objetiva-se apreender as intencionalidades presentes neste modo de ressocialização. Parte-se do pressuposto de que tais intencionalidades envolvem questões políticas, econômicas, religiosas, morais e simbólicas.

Do ponto de vista metodológico, a pesquisa de campo foi realizada durante os meses de junho, julho e agosto de 2014. Os registros mais significativos foram efetivados durante quatro dias na Jornada de Libertação com Cristo, em agosto de 2014, no "Centro de Reintegração Social Dr. Mário Ottoboni", sede da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados da cidade de Pouso Alegre, Minas Gerais.

No que tange a Jornada de Libertação com Cristo, o grupo de pesquisadores participaram do evento como se detentos fossem. As atividades ocorreram de quinta a domingo de agosto de 2014 e durante toda a realização da Jornada de Libertação com Cristo utilizou a técnica da observação-participante, cujas expressões foram relatadas no caderno de campo.

Durante a participação na Jornada todas as atividades de ressocialização disponibilizadas aos detentos foram vivenciadas pelos pesquisadores. A proposta da Jornada remete a ideia de um retiro espiritual com a centralidade das atividades no resgate ou superação do sentimento de culpa explicitado no passado criminoso do detento. Atividade moral patrocinada por religiões cristãs, carismáticas ou neopentecostais, em que os detentos dividem experiências, trocas de conhecimento e ensinamentos difundidos.

Nas dependências da APAC o alojamento dos pesquisadores se deu na ala destinada aos condenados em regime aberto. Durante o evento houve o contato direto com recuperandos [4], funcionários da associação e diversos voluntários que trabalharam na organização. O evento observado contou com palestrantes, juízes de direito, representantes de igrejas católicas e/ou evangélicas e representantes da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), entidade que gerencia as APACs pelo Brasil.

Na oportunidade, o quarto de dormir ou as acomodações dos participantes externos foram as celas, semelhantes às dos detentos. A prisão é semelhante as prisões brasileiras, contendo celas gradeadas. Contudo, aparentavam limpas, arejadas e organizadas. As camas, no formato de beliche, eram de alvenaria e confortáveis, dentro daquela lógica e arquitetura. Dentro dessa ambiência passaram-se 4 dias de intensa atividade em que as falas capturas eram carregadas de sentimentos, sofrimentos, dores, dramas, arrependimentos, verdades e mentiras.

A observação direta foi registrada em caderno de pesquisa de campo, no sentido de visualização das dimensões simbólicas e da produção dos sentidos no interior daquele lócus de relação. Do ponto de vista das escolhas e dos critérios de análise aproximou-se da sugestão do "Compreender" de Bourdieu (1997), contida no livro "A Miséria do Mundo".

Para além dos cuidados epistemológicos, ressalta o cuidado ético-metodológico no tratamento do material coletado, uma vez que se privilegiou evitar a relação determinada pela suposta superioridade entre pesquisador e pesquisado, sobretudo quando se tem o que Bourdieu (1997, p. 695) chama de "dissimetria social". Num ambiente hostil evitar discrepância de comunicação faz com que o pesquisador reveja prováveis posições sociais, morais, psicológicas e simbólicas de superioridade sobre o pesquisado. Equivale afirmar que os registros das falas foram feitos durante a noite, distante de qualquer contato com detentos ou demais atores envolvidos com a Jornada.

O texto, para melhor entendimento da proposta, foi dividido em três momentos: a.) demonstração do panorama atual do sistema carcerário brasileiro, a violência criminal e as intencionalidades salvacionistas da Associação; b.) enfoque nas políticas públicas sobretudo as caracterizadas como multicêntricas, o que é o caso traçado APAC, bem como trazer seus contextos; c.) a leitura das informações coletava no campo, a partir da participação na Jornada de Libertação com Cristo.

1. Marco Teórico

A proposta teórica circunscreve-se ao questionamento do sistema carcerário brasileiro, no sentido estabelecer uma relação entre as violências prisionais e as intencionalidades ressocializadoras aplicadas naquele espaço de reclusão e detenção. Não se pode abrir distâncias entre a realidade carcerária, o cárcere e o papel das APACs. Como ressonância, explicitar os processos de ressocialização, realçando as experiências da observação de campo, bom como compartilhando os sentimentos, os sofrimentos, as dores, os dramas, os arrependimentos, as verdades e as mentiras vivenciadas durante a pesquisa de campo. Dentro desse quadro que se pretende apresentar o "modelo" ou o "modo" APAC de ressocializar, cuja metodologia de ressocialização é aplicada na unidade da APAC da cidade de Pouso Alegre, MG (OLIVEIRA, 2012).

1.1. Em Debate o Sistema Carcerário Brasileiro: violências e intencionalidades ressocializadoras

O debate no Brasil sobre segurança pública, associado às questões de ressocialização, encarceramento e violência, se faz intenso na academia e na mídia [4]. Ponto pacifico é o de que o tema adquiriu caráter multidisciplinar, transcendendo as ciências jurídicas, tecendo uma rede de possibilidades nos campos de conhecimento da administração pública, sociologia, filosofia, antropologia, psicologia, associadas para se buscar soluções às questões inerentes à Segurança Pública.

Alguns dados auxiliam a ilustrar o panorama da segurança pública no Brasil a partir de números recentes que indicam a seriedade de se tratar o tema, já que foram mensuradas 206.005 vítimas de homicídio entre os anos de 2008 e 2011 e cerca de 2.347.048 brasileiros mortos em razão da chamada causa violenta – que inclui homicídio, suicídio e acidentes de transporte (WEISELFISZ, 2014).

Esses números demonstram a gravidade do problema e está diretamente ligado à banalização da violência, fato não é novo para a sociedade. Então o que mudou? Para Menezes (2010) mudou, o olhar e a percepção da sociedade, que se aparenta mais sensível para estes acontecimentos, adiciona-se também um maior foco a esses acontecimentos pela difusão dos meios de comunicação que sensacionalizam esses eventos. Cabe ressaltar que embora a violência esteja mais evidente na atualidade ela é uma das formas de expressão da racionalidade e esteve presente na história da humanidade – ao longo da formação dos Estados, nas grandes guerras e revoluções - e no desenvolvimento dos seres humanos (SOUZA; BAPTISTA; BRITO, 2010).

De alguma forma, a violência é parte da constituição humana. Na visão de Costa; Pimenta (2006, p. 33) a "[...] violência é um fenômeno histórico e social de diversas facetas" que caminhou dentro da história da humanidade até a atualidade, na qual a violência é utilizada na dimensão civilizadora do Estado, que tem seu monopólio e a utiliza para o controle social.

Diante deste cenário de violência, maior percepção da sociedade para os fatos e a influência da mídia na propagação das notícias sobre o tema, a problemática do sistema carcerário brasileiro ganha status na medida em que surgem denúncias de violência, corrupção, maus tratos e diversos outros problemas inerentes ao sistema, que foram evidenciados deste a época colonial quando já se discutia a reforma de um sistema que maltratava os condenados com masmorras insalubres que não conseguiam recuperar o indivíduo para o seu retorno ao convívio em sociedade (TRINDADE, 2012).

Essa discussão prolonga-se até a atualidade, em um cenário no qual debate-se a possibilidade de privatizar os presídios, passando todo o seu controle para a iniciativa privada. Isso já acontece nos Estados Unidos, caracterizado por um sistema baseado nas leis e regras de mercado, gerando uma estrutura de encarceramento industrializado, com um crescente do número de reclusos e das prisões privadas (HERIVEL, 2013).

Em nível de Brasil, há outros modelos, os quais são vislumbrados para tentar solucionar a problemática da gestão do sistema carcerário, como o caso das Parceiras Público e Privada (PPP), a reorganização gerencial do atual sistema público de presídios e as transferências de gestões de penitenciárias para outros atores sociais, como as Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APACs), já difundidas no Estado de Minas Gerais, com 35 unidades em funcionamento, e objeto de reflexão.

1.2 A Realidade, o Cárcere e as APACs

Mediante a problemática estrutural do sistema carcerário brasileiro que atingiu a marca de 711.463 presos em 2014 (MONTENEGRO, 2014) e obteve a negativa histórica de se registrar a terceira maior população carcerária no mundo, atrás apenas de Estados Unidos e China. Do ponto de vista funcional e emergencial, fica clara a necessidade de se elaborar medidas de gerenciamento de penitenciárias que atendam as regras estabelecidas na Constituição Federal, na Lei de Execução Penal e nas regras de tratamento para condenados da ONU.

A partir dessa constatação, faz-se necessário pensar em políticas públicas que estabeleçam soluções não só para a gestão dos estabelecimentos prisionais, mas também que auxiliem nos problemas sociais que fazem com que milhares de jovens se direcionem ao mundo do crime e se marginalizem. Em Minas Gerais, 55% dos presos possuem menos de 29 anos, 80% destes não tem ensino fundamental completo e 55% do total das prisões em Minas Gerais tem como causa o tráfico de drogas e a associação para o tráfico (ANDRADE, 2014, p. 35-36).

Nas políticas públicas sociais, bem como nas demandas prisionais, há uma aposta em deslocar da política pública prisional conduzida pelo Estado para a gestão da iniciativa privada, ou das parcerias público privadas, no caso por meio do trabalho da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC). Mas, se as políticas públicas têm como interesse a sociedade no geral e por muitos pode ser considerada o governo em movimento (SOUZA, 2006), como elas podem ser geridas pela iniciativa privada?

Discutir o papel da iniciativa privada na gestão das políticas públicas no Brasil é recente. Em Lima (2012), ao fazer a reflexão sobre a função das políticas públicas, aponta para uma mudança no foco do gerenciamento das coisas essencialmente de caráter público. O que era coisa do Estado passa a ser coisa de interesse do mercado, assumindo um caráter de ações e atividades interdisciplinares, de lucro ou de diminuição de custos aos cofres públicos.

A partir da visão interdisciplinar das políticas públicas e das inúmeras aplicações destas, a ação de uma entidade privada sem fins lucrativos na gestão e manutenção de um estabelecimento prisional pode ser caracterizada como política pública multicêntrica, sendo aquela que ignora a personalidade jurídica de quem formula a política e se preocupa com a origem do problema a ser enfrentado (SECCHI, 2013). Se o problema é público, independente de quem formula a política, ela se torna pública (LIMA, 2012). Nesta linha de raciocínio é que Pimenta e Alves (2010, p. 11) equacionam a tensão entre o público e o privado na gestão dos temas de interesse do Estado, o que nem sempre é suportado pelos princípios do mercado.

 Quando se tem uma sociedade que precisa lidar com a problemática do sistema carcerário, que na visão de Ottoboni (2001) prepara o homem para cometer mais crimes e não para o retorno e o convívio em sociedade, fica evidente o caráter público destas políticas. Em outros termos, apropriando das sugestões de Pimenta e Alves (2010), ressalta-se que as políticas públicas têm relevância para o desenvolvimento da sociedade e embora, algumas vezes, geridas pela iniciativa privada, elas têm o seu caráter público.

Secchi (2013) também argumenta no sentido de que para um problema seja considerado público, este deve ter implicações para uma quantidade ou qualidade notável de pessoas, fato que faz do sistema carcerário brasileiro um exemplo de interesse público, ao atingir às pessoas reclusas, suas famílias e toda à sociedade.

O estranhamento se dá quanto atores diferentes do Estado tomam frente em gerir e elaborar as políticas públicas. São as ações de empresas privadas e o terceiro setor, como ONGs e associações, como a APAC. Para Höfling (2001) as políticas públicas podem ser percebidas como a ação do Estado em implementar seu projeto de Governo por meio de roteiros para setores específicos da sociedade e ademais, cabe ressaltar que não se pode reduzir as políticas públicas somente como políticas estatais, mas sim como políticas formuladas por Estado e Sociedade.

É nesse ideal de políticas públicas formuladas pelo trabalho conjunto de Estado e Sociedade que a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados surgiu nos anos 70 em São José dos Campos, São Paulo. Inicialmente mantendo-se a sigla APAC, mas com o nome Amando o Próximo Amarás a Cristo e com influência da Pastoral Penitenciária, foi criada por Mário Ottoboni e voluntários se reuniram com a intensão de amenizar o sofrimento dos condenados do presídio de Humaitá (cidade de São José dos Campos, São Paulo) e com a força adquirida pelo ato visualizaram a necessidade de transformar o trabalho em uma entidade civil de direito privado sem fins lucrativos (OTTOBONI, 2001).

A metodologia de ressocialização de detentos da APAC é inspirada na Lei de Execução Penal, na Constituição Federal e nas regras mínimas para tratamento de prisioneiros da ONU (OLIVEIRA, 2012). Um dos grandes focos do método APAC é não desconsiderar a finalidade punitiva da pena, mas promover a consolidação dos direitos humanos, com a oferta de alternativas para a ressocialização do condenado e com o ideal de permitir a sua dignidade, evitando que as penitenciárias utilizadoras do método APAC não sejam semelhantes às demais quanto às falhas na oferta de cidadania e nos cumprimentos às leis vigentes no país.

A leitura do método APAC inscreve ou inspira inúmeras entradas interpretativas. Uma delas, atualizando o pensamento foucaultiano, pode-se dizer que promove novas condicionamentos socioculturais, simbólicos e morais sem precedentes no corpo, na memória e identidade do detento. Mesmo com um enfoque "humano" da proposta e em conformidade com as legislações vigentes no país, cabe lembrar que, como sugere Foucault (2014), essas disciplinas e práticas de encarceramento funcionam cada vez mais como técnicas que fabricam e moldam indivíduos úteis que possam servir à sociedade ou, no mínimo, frequentá-la com obediência e docilidade.

Nas intencionalidades que norteiam as ações e atuações da APAC, no que tange aos processos de ressocialização, não se vê o reconhecimento de que compõem um campo de novos condicionamentos sociais, a partir da moral religiosa, da culpa e da docilidade dos corpos. A crença é a de que suas práticas e atuações zelam pela proteção dos direitos humanos. Inclusive, porque essas ressocializações ganharam a notoriedade no Brasil e vem sendo implantadas no sul do Estado de Minas Gerais.

A valorização, no plano legal e funcional, dos direitos humanos ganha força após o período de transição democrática brasileira e com a promulgação da Constituição de 1988. Em termos gerais, proporcionou inúmeras conquistas de cidadania à sociedade brasileira (BARREIRA; PINHEIRO, 2010).

O alicerce das ações de ressocialização planejadas pelas APACs está no Título II e no artigo 5º da Constituição Federal brasileira, o qual trata dos direitos e garantias fundamentais (BRASIL, 1988). Dentro desse escopo é que o trabalho das APACs se expande por 147 unidades distribuídas por 17 estados brasileiros e por países no exterior como Canadá, Chile, Colômbia, Estados Unidos, México, Rússia, Ucrânia, Uruguai, Zimbábue, Nova Zelândia, Bulgária, Austrália e outros (OLIVEIRA, 2012).

2. Processos de Ressocialização e Experiências de Pesquisa: sentimentos, sofrimentos, dores, dramas, arrependimentos, verdades e mentiras

Na busca pelo "retreinamento" dos indivíduos (CAPPELER, 1985), para a reinserção na sociedade do capital, ou simplesmente, da ressocialização, as APACs aplicam em suas unidades uma metodologia contemplada por doze pilares: participação da comunidade; o recuperando ajudando o recuperando; trabalho; a religião e a importância de se fazer a experiência de Deus; assistência jurídica; assistência à saúde; valorização humana; a família; o voluntário e o curso para sua formação; centro de reintegração social; mérito e a jornada de libertação com Cristo (OTTOBONI, 2001). Desses pilares que sustentam a metodologia de ressocialização das APACs, vê-se um forte apelo aos recursos da religião, especificamente, nas suas perspectivas cristã, carismática e pentecostal, numa versão ecumênica entre católicos e evangélicos.

O item "Jornada de Libertação com Cristo", atividade de ressocialização da APAC é uma atividade importante em que se expressam as intencionalidades do processo. A jornada é anual e, em 2014, foi realizada entre os dias 21 e 24, na unidade APAC de Pouso Alegre, MG. Na jornada ocorreram os registros das observações de campo, devidamente apontada na introdução, e teve como lema: "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei".

Nesta oportunidade, a pesquisa ganhou um conjunto de dados significativos que reverberou numa melhor compreensão da proposta da APAC. Contudo, as anotações no caderno de campo e os registros de câmera fotográfica não se traduziram eficiente, mas inibitória. A solução foi a de não fotografar a Jornada e de registrar as observações no caderno de campo, isoladamente e no período noturno, após encerramento das atividades do dia.

Na qualidade de voluntário da jornada ou de dirigente voluntário (auxiliar dos palestrantes e das atividades solicitadas), ficou mais tranquilo o contato com os recuperandos. As conversas e os diálogos ocorreram nos momentos de refeição ou até mesmo nos intervalos entre um dia e outro da jornada, mas nos períodos de recolhimento às dependências do alojamento do regime aberto é que o trabalho de relatório ficava mais intenso.

Entre todas as etapas da jornada, alguns trechos de falas de atores envolvidos com a jornada chamam a atenção quando evidenciam a percepção deles sobre o trabalho realizado pela APAC, o que implicou no registro de alguma delas [6]:

A fala do membro da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), entidade que regulamenta, gerencia e presta assessoria às APACs existente no mundo coloca em dúvida a força da expansão das APACs, pois: "o trabalho da APAC no estado de São Paulo é complicado de expandir pelas ações do PCC (...)". Há uma possibilidade de expansão das APACs pelo Brasil. Contudo, fica evidente a interferência de muitos fatores, desde político-econômico até religioso. No caso do Estado de São Paulo a dificuldade da expansão do método da APAC fica por conta da facção criminosa do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Um empregado da APAC enxerga as dificuldades a ser vencida pelas APACs, pois entende ser "(...) um presente de Deus para cada um de nós!". Esse relato está crivado de sentimento de religiosidade, um dos fundamentos do método APAC de ressocialização, cuja seu discurso se aproxima de atitudes e atividades no campo da caridade.

O Juiz da Vara de Execução Penal da Comarca de Pouso Alegre, MG, estabeleceu uma comparação entre os presídios do sistema penitenciário chamados de comum, gerenciados exclusivamente pelo Estado com as penitenciárias do método APAC. Para ele, "a APAC tem mais a oferecer do que o sistema prisional comum...". Em outra perspectiva, um recuperando afirmou que a vida na APAC é totalmente diferente da vida que levava em um presídio comum, "aqui estamos no céu, mais que no paraíso...". O recuperando exalta a qualidade de vida no centro de reintegração social da APAC.

Em outras falas percebidas em conversas informais entre os membros das APACs de outros Estados ou até mesmo de outras unidades em Minas Gerais, destaca-se o trabalho da associação, mas não fazem nenhum tipo de vinculação deste trabalho ao trabalho realizado pelo Estado ou sequer é mencionado o caráter público desta ação.

Percebe-se que independente de posição social, as falas demonstram mudanças que a APAC proporcionou para a vida de algumas pessoas, resumidos em admiração pelo trabalho realizado pela associação. Vê-se que o trabalho realizado pela entidade diverge dos presídios públicos, especialmente em se tratando das unidades em Minas Gerais, as quais são administradas pela Subsecretaria de Administração Prisional (SEDS).

3. Considerações Finais

Na busca por apreender o caráter público da APAC estudada, enquanto alternativa penal, mesmo gerido pela iniciativa privada, debruçou-se sobre os processos de ressocialização desencadeados pela APAC aos seus recuperandos, em que se destaca as falas dos envolvidos, bem como as justificativas para acreditar que a APAC pode ser traduzida como um "modelo" prisional alternativo, face a gestão caracterizada como iniciativa privada.

As falas desencadeadas por empregados da APAC, dos recuperandos e do Juiz de Direito, grafadas no texto, dão o sentido das intencionalidades e dos processos de ressocialização desenvolvidos naquela entidade, no qual demonstram a valorização do trabalho aplicado pela associação. Nas APACs a proposta se esbarra em apelos cristãos como argumento de recuperação dos presos, excluindo o caráter laico do Estado Moderno.

Por outro lado, em nenhum momento houve questionamento ou tensão sobre a função pública das práticas do cárcere, bem como sobre qual modelo de gestão se sobrepõe ao outro, o público ou o privado. Contudo, não há clareza sobre a natureza pública contida neste modelo de trabalho.

É fato, independente das opiniões dos atores envolvidos com o trabalho de ressocialização realizado pela APAC, que não se vislumbram com o caráter público da associação. Mas, há, a todo momento, um exercício de comparação e de desqualificação do sistema prisional público, em nome da eficiência da gestão e da desumanização das prisões, o que justifica o formato religioso e cristão do método APAC.

A intervenção da sociedade civil, o que é o caso da APAC, acontece pela lacuna deixada pelo Estado, cada vez mais minimizado e localizado nas "eficiências" do mercado. Equivale dizer que a disseminação do método APAC por diversos estados brasileiros, sobretudo pelo Estado de Minas Gerais, conta com o apoio dos poderes executivo, legislativo e judiciário, os quais identificam que o trabalho realizado pela associação se mostra de interesse público.  

Dentro das necessárias do Estado buscar alternativas ao sistema prisional, vê-se que as APACs atendam aos interesses de ordem social ou de cultura da paz em sociedade. Entretanto, às APACs, enquanto novas tecnologias de socialização de corpos, se inscrevem em novas formas técnicas de condicionamentos sociais e de docilidades corporais.

Enquanto tecnologia de socialização de corpos que tem que dar certo, a APAC, auxiliada por peritos, psicólogos, educadores, religiosos, voluntários subsidiam as escolhas judiciárias do bom detento que deve fazer parte ou que aceita as regras desses novos condicionamentos, ou como diria Foucault (2014), "corpos dóceis". Em termos foucaultiano, não se é ignorado o fato de que o ofício na prisão tem intenção econômica com o ideal de construir novos indivíduos pautados nas regras de uma sociedade industrial.

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1. Mestrando em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade pela Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI-MG). Email: jfsarcar@gmail.com
2. Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e docente da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI-MG). Email: carlosalbertopimenta@gmail.com
3. Mestrando em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e docente do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG). Email: jlc.oliveira@yahoo.com.br

4. No método APAC o detento é chamado recuperando. Daqui pra frente utilizar-se-á esta denominação.

5. Este debate se intensifica a partir dos estudos dos grupos: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Núcleo de Estudos e Pesquisa em Violência, Ética e Direitos Humanos (NEPEVEDH-PUC/RS) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

6. Todas as falas produzidas neste texto foram extraídas das observações de campo realizadas durante a Jornada de Libertação com Cristo, mencionada no corpo do texto.


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