Espacios. Vol. 36 (Nº 11) Año 2015. Pág. 13

Percepções sobre insetos em duas comunidades rurais da Serra do Passa-Tempo, Nordeste do Brasil

Perceptions of insects in two rural communities of the Serra do Passa-Tempo, Northeastern Brazil

José Rodrigues de ALMEIDA NETO 1; Eraldo Medeiros COSTA NETO 2; Paulo Roberto Ramalho SILVA 3; Roseli Farias Melo de BARROS 4

Recibido: 25/02/15 • Aprobado: 18/04/2015


Contenido

1. Introdução

2. Metodologia

3. Resultados e discussão

4. Conclusão

Referências


RESUMO:
Este trabalho verificou como os insetos são percebidos nas comunidades rurais da Serra do Passa-Tempo, Nordeste do Brasil. Entrevistas foram realizadas com 63 pessoas. 62 animais foram citados na etnocategoria inseto, dos quais, 28 não pertencem à classe Insecta. Tal motivo repousa na forma como os entrevistados percebem esses animais, que em geral é de forma negativa, o que corrobora a hipótese da ambivalência entomoprojetiva. No entanto, os insetos também foram adjetivados como animais bons, pois possuem algum valor atribuído. A percepção nasce de suas experiências individuais e coletivas, mas também, sofre influência por diferentes meios, como escola e mídia.
Palavras-chave: Etnoentomologia, Etnotaxonomia, Conhecimento tradicional

ABSTRACT:
This study examined how insects are perceived in the rural communities of the Serra do Passa-Tempo, Northeast Brazil. Interviews were conducted with 63 people. 62 animals were cited in insect ethnocategory, of which 28 did not belong to the class Insecta. This reason lies in the way respondents perceive these animals, which is usually in a negative way, which supports the hypothesis of entomoprojective ambivalence. However, the insects were also adjectival as good animals because they have a value assigned. The perception is born of their individual and collective experiences, but also is influenced by different means, such as school and media.
Keywords: Ethnoentomology, Ethnotaxonomy, Traditional Knowledge

1. Introdução

É sabido que desde os primórdios da humanidade os insetos participam significativa e insistentemente da vida sociocultural da maioria dos grupos étnicos (Silva, Costa Neto, 2004). O fato de possuírem grande abundância e distribuição na Terra, os insetos mantêm contato muito próximo com as pessoas, estando presentes em suas vidas nas mais diversas situações, proporcionando experiências que podem afetar o julgamento, a percepção e atitude que se tem sobre esses animais (Ellen, 1997; Goodenough, 2003; Ulysséa et. al. 2010).

A palavra "inseto" possui vários significados determinados pela cultura de um povo, em especial, construídos por dimensões afetivas e ideológicas, que leva à reunião em um mesmo domínio de animais não sistematicamente relacionados à Classe Insecta (Costa Neto, 1999; Silva, Costa Neto, 2004; Petiza et al. 2013). É bastante intensa a presença de elementos culturais definindo a forma como um determinado termo ganha significado junto às pessoas, e no caso dos "insetos", este é em grande maioria representado por significados negativos de nocividade (Trindade et. al. 2012). Contudo, a ideia de percepção pejorativa como único direcionamento aos insetos não é generalizada, pois em algumas situações eles podem ser percebidos de forma antagônica, ou seja, ambivalente, como bons e ruins, seja por relações inatas dos seres humanos em manter contato com outras formas de vida, seja por atribuições de valores de diversas ordens a esses animais (Kellert, 1993; Wilson, 1993; Costa Neto, 1999). Então, a maneira como o indivíduo percebe o mundo natural influencia o modo como ele pensa, age e expressa emoções com relação aos animais (Posey, 1987).

A construção da percepção sobre os insetos era, na antiguidade, exclusivamente com base na vivência pessoal ou de um grupo, contudo, atualmente, existe uma perda de vivência e distanciamento do homem com os insetos devido à forte influência de outras formas de aquisição de conhecimento sobre esses animais, como, por exemplo, a mídia (Costa Neto, 2004; Ulysséa et. al. 2010). Um ramo da etnozoologia que tem como foco de estudo esse conhecimento, além das percepções e usos que as comunidades tradicionais possuem em relação aos insetos, é a Etnoentomologia. (Costa Neto, Resende, 2004).

No Brasil, muitos estudos etnoentomológicos já foram desenvolvidos em especial na região Nordeste, principalmente no Estado da Bahia (Alves, Souto, 2010). No contexto nordestino, merecem atenção os trabalhos de percepção sobre insetos em comunidades rurais desenvolvidos por Silva, Costa Neto (2004) na comunidade Olho D'água no Estado da Bahia, e o de Alencar et. al. (2012) nas comunidades Besouro e Barroquinha no Estado da Paraíba. No tocante ao Estado do Piauí, são escassos os trabalhos de percepção etnoentomológica em comunidades rurais, mas se registra o trabalho de Souza Junior, Lima (2014) sobre as representações de insetos em hortas e mercados públicos da capital Teresina.

Levantando a hipótese de que insetos, apesar de serem percebidos de forma negativa, a depender do contexto cultural e suas características, também podem ser percebidos de forma positiva, este trabalho buscou verificar como os insetos são conhecidos e percebidos pelos moradores de duas comunidades rurais da Serra do Passa-Tempo, Estado do Piauí, Nordeste do Brasil.

2. Metodologia

A pesquisa foi realizada nas comunidades Passa-Tempo e Nova Vida, situadas na Serra do Passa-Tempo, município de Campo Maior, Estado do Piauí, no Nordeste brasileiro. O município possui uma população estimada de 45.177 habitantes, sendo 11.656 da zona rural, com densidade demográfica de 26,96 Km2/Hab.(Ibge, 2010). Faz parte do território de desenvolvimento dos carnaubais e apresenta um clima tropical alternadamente úmido e seco, temperaturas médias entre 26°C a 35°C e precipitação pluviométrica de 1.302,4 mm.  A área de estudo é composta por diferentes fisionomias vegetais, especialmente na porção sul do Complexo Vegetacional de Campo Maior, onde se encontra uma zona de transição cerrado-caatinga, com predomínio do cerrado rupestre (Barros, 2012).

As comunidades Nova Vida e Passa-Tempo possuem nove e 22 residências, respectivamente, apresentando estreita relação, pois dividem praticamente o mesmo espaço territorial, tendo como referencial limítrofe uma cerca, e mantêm relações de compadrio e vizinhança harmônicas, em uma dinâmica de ajuda mútua e reciprocidade. A religião católica é predominante nas comunidades, tendo poucos moradores evangélicos. Eles se reconhecem como trabalhadores do campo, mas os mais novos exercem pluriatividades na cidade, como professores do ensino infantil, motoristas, comerciantes, dentre outras. As atividades exercidas na cidade, o pouco ganho da produção no campo e os benefícios recebidos do governo são a fonte de renda das comunidades.

Cada comunidade pertence a uma família, na qual as gerações se perpetuam e manejam a terra. Nova Vida foi, no passado, território de Passa-Tempo, e atualmente cada uma possui seu calendário social, especialmente no tocante à devoção católica, com igrejas e santos de devoção diferentes, mas fazem parte da mesma associação de moradores.  Embora haja essa divisão política entre as comunidades, culturalmente os seus moradores, em maioria, não reconhecem essa diferença, sendo todos moradores da Serra do Passa-Tempo, e nesse sentido, a pesquisa analisou as duas comunidades em conjunto.

Realizou-se o estudo em campo entre julho de 2013 e agosto de 2014 através do método de entrevistas por residência, definido por Begossi et al. (2009), onde em comunidades com até 50 famílias, são feitas entrevistas em todas as casas. Portanto, todas as casas (n=31) das duas comunidades foram visitadas e 63 entrevistas foram procedidas com pessoas de ambos os sexos, com idade entre 18 e 83 anos. A pesquisa foi aprovada no Conselho de Ética da Universidade Federal do Piauí (UFPI), sobre número de CAAE 20917713.1.0000.5214 e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), preconizado pela resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde foi lido antes de cada entrevista e assinado pelos entrevistados.

Como método de rapport (Barbosa, 2007), familiarização e confiança com os membros das comunidades, nos primeiros meses foram estabelecidos contatos prévios através da agente comunitária de saúde e uma reunião foi realizada com a comunidade para a apresentação dos propósitos do trabalho. Foram utilizadas como técnica de coleta em campo a observação direta, bem como entrevistas com auxílio de formulários padronizados semiestruturados (Apolinário, 2006). Usou-se também gravador e diário de campo (Silva, 2000). 

Para a captura dos insetos, foi usado o método de coleta etnoentomológica adotado por Costa Neto (2003), que tem como objetivo a obtenção de uma amostra de insetos expressiva e sondagem das espécies. Assim, potes de coleta foram distribuídos aleatoriamente em residências das comunidades e pedido que os moradores depositassem os insetos capturados no dia-a-dia, e esses potes eram checados periodicamente. Os insetos foram identificados, processados e armazenados seguindo os padrões usais de coleções e se encontram incorporados na Coleção de Entomologia do Laboratório de Fitossanidade do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Piauí – CCA/UFPI.

As entrevistas foram transcritas e organizadas em planilhas no programa Microsoft Excel 2013® para a análise qualiquantitativa e expressas no texto através das transcrições de fala, em tabelas e gráficos. As planilhas com as transcrições estão arquivadas no núcleo de pesquisa do Trópico Ecotonal do Nordeste (TROPEN) da UFPI. As transcrições de fala são apresentadas sempre com um código ("E", de entrevistado (a), seguido do número da entrevista e idade). Toda informação pertinente ao assunto pesquisado foi considera, o que pressupõe o modelo da união das diversas competências individuais de Hays (Marques, 1991).

3. Resultados e discussão

Para os entrevistados, moradores da Serra do Passa-Tempo, os insetos constituíram uma listagem de 62 organismos (Figura 1), dos quais 28 não são considerados pela classificação científica pertencente à Classe Insecta proposta por Linnaeus. A inclusão de diferentes animais no rótulo linguístico "inseto" é comum em muitas sociedades humanas e está diretamente relacionada a características perceptivas e interacionais com esses animais (Silva, Costa Neto, 2004; Ulysséa et. al. 2010). A quantidade de insetos percebidos estar relacionada a diversos fatores, seja pelo expressivo número de espécies e indivíduos por espécie no ambiente ou por algum grau de importância desses animais, que acabam gerando troca de percepções entre as pessoas dentro da comunidade  afirmam Ellen (1997) e  Modro et. al. (2009 ).

Tabela 1. Insetos conhecidos pelos moradores da Serra do
Passa-Tempo, Município de Campo Maior/Piauí, Brasil.

ORDEM

NOME VULGAR

FAMÍLIA/ESPÉCIE

CITAÇÕES

Blattodea

Barata

Blattidae

Periplaneta americana (Linnaeus, 1758)

40

Orthoptera

Gafanhoto

Acrididae

20

 

Esperança

Tettigoniidae

7

 

Galo-mago/Mané-mago/João-mago/Serra-pau

 

Proscopiidae

14

 

Grilo

Gryllidae

4

Isoptera

Cupim

-

9

Hemiptera

Barbeiro

 

Triatominae

11

 

Cascudo

Pentatomidae

12

 

Cigarra

 

Cicadidae

4

 

Percevejo

Cimicidae

1

 

Pulgão

Aphidoidea

1

Coleoptera

Besouro

-

3

 

Gongo

Chrysomelidae

Pachymerus nucleorum (Fabricius, 1972)

11

 

Potó

Staphylinidae

3

 

Rola-bosta

Scarabaeidae

1

Lepidoptera

Borboleta

Hesperiidae

27

 

Lagarta

-

32

 

Mariposa

Noctuidae

1

 

Traça

-

1

Hymenoptera

Abelha

Apoidea

36

 

Cavalo-do-cão

Pompilidae

1

 

Formiga

Formicidae

35

 

Maribondo

Vespidae

11

Diptera

Mosca

Muscidae

25

 

Mosquito-da-dengue

Culicidae

Aedes aegypti (Linnaeus, 1762)

6

 

Muriçoca

Culicidae

11

 

Muruim

Culicidae

3

 

Mutuca

Tabanidae

4

Odonata

Catirina/catiringa

-

8


Os animais percebidos no domínio cultural inseto que mais se destacaram, apresentando mais de 30 citações cada (Tabela 1), foram: escorpião, barata, abelha, formiga, aranha, cobra e lagarta. Todos eles foram citados como causadores de alguma ofensa, injúria ou prejuízo individual e à coletividade, ou seja, a característica negativa percebida parece ser um elemento importante na representação e classificação dos "insetos" pelos entrevistados.  A organização desses animais pertencentes a outros táxons ( Tabela 2)  na categoria semântica "Inseto" é reforçada pela hipótese da ambivalência entomoprojetiva postulada por Costa Neto (1999), que afirma com base nos conceitos de ambivalência da sociologia e projeção da psicologia, que os seres humanos tendem a projetar sentimentos e atitudes ambíguos a animais não insetos, incluindo-se também o homem, associando-os à categoria "inseto" culturalmente construída (Figura 1).

Tabela 2. Animais de táxons diferentes, classificados como insetos pelos
moradores da Serra do Passa-Tempo, Campo Maior /PI. Brasil

 

ANIMAIS

 

TAXONOMIA

 

CITAÇÕES

Aranha

Aranae

33

Cachorro

Canis lupus familiares

1

Carambolo/

calango

 

Gekkonidae

21

Camaleão

Chamaleonidae

5

Caranguejo

Brachyura

1

Carrapato

Ixodida

1

Cobra

Serpentes

34

Embuá

Diplopoda

7

Escorpião/

lacraia

 

Scorpiones

42

Gato

Felis catus

1

Jabuti

Testudinidae

1

Jacaré

Alligatoridae

3

Macaco

Primatas

1

Minhoca

 

Haplotaxida

4

Morcego

Chiroptera

17

Piolho-de-cobra

Chilopoda

12

Piunga

Acarina

1

Rasga-mortalha

Tytonidae

2

Rato

Muridae

24

Sapo

Bufonidae

8

Tejo/tiú

 

Teiidae

6

Tijubina

Teiidae

2

Víbora

Gekkonidae

1

As ofensas e injúrias causadas pelos insetos são geradoras de desconfortos emocionais para os entrevistados: "A barata é inseto maldito, pertuba a gente, prejudica, tira o sono e incomoda" (E 14, 39 anos); "Vixe, a cobra é um dos inseto mais perigoso, quando vejo uma fico toda arrepiada, nam!" ( E 39, 28 anos).Para Trindade et. al.(2012) a ideia de nocividade atua como um núcleo central da representação social sobre os insetos, sendo um elemento resistente à mudança, que induz à predominância do significado pejorativo verificado para esses animais. A concepção de nocividade como característica perceptiva também pode ser explicada por Anderson (1996), quando afirma que os fatores emocionais direcionam a percepção dos seres humanos sobre um determinado objeto. A nocividade também pode ser vista em outros estudos de percepção etnoentomológica em comunidades rurais como elemento importante na conceituação dos insetos (Costa Neto, Magalhães, 2007; Ulysséa et. al. 2010).

Quando perguntados sobre o que eram insetos, os entrevistados responderam sempre com frases adjetivas, as quais foram interpretadas eticamente e configuradas através de um diagrama apresentado na Figura 1. As frases conceituais refletiram uma dualidade e ambivalência de sentimentos, em alguns casos os insetos foram conceituados como animais ou bichos bons (02 entrevistados), em outros como ruins (50 entrevistados), ou bons e ruins (11 entrevistados).

Figura 1: Conceito em relação aos insetos dos entrevistados
na Serra do Passa-Tempo, município de Campo Maior/PI, Brasil.

Na interseção (Figura 1) entre bom e ruim, encontra-se a dualidade direcionada aos insetos pelos entrevistados, como pode ser vista nessas frases: "É coisa boa e coisa ruim, tem alguma função, mas é meio nojento" (E 10, 43 anos); " É bicho nojento, mas tem uns que são bom" (E 39, 28 anos). Essa ambivalência emocional na relação homem-inseto está relacionada à necessidade que a espécie humana possui de se relacionar, portanto manter contato, com outros seres vivos para o próprio bem-estar da espécie, e nessa relação sentimentos positivos e negativos está envolvido, como explica a hipótese da biofilia de Wilson (1993). A percepção dos insetos como animais bons pode ser vista por essas frases adjetivas: "São aqueles animaizinhos bonitinhos, é um ser vivo que dá mais esperança na terra" (E 50, 20 anos), e "os insetos só atacam pra se defender, mas não são ruins não, e são importantes pra gente" (E 54, 28 anos). Assim como observado por Alencar et. al. (2012) no estudo com comunidades rurais da Paraíba, os insetos são percebidos de forma positiva quando apresentam algum valor no cotidiano das pessoas.  Isso vai ao encontro do que propôs Kellert (1993), através de seu estudo sobre tipologias na relação humanos/invertebrados, em que diferentes escalas de valores podem ser atribuídos a esses animais, como valor utilitário, estético, lúdico, ecológico, entre outros.

Como uma forma de observar a origem das percepções e conhecimentos sobre os insetos pelos entrevistados, inquiriu-se quando eles começaram a ter conhecimento sobre esses animais e de que forma (Figura 2). A maioria (84 %) se referiu à fase da infância, como o momento primeiro de reconhecimento dos insetos, seguido da adolescência (14 %) e da fase adulta (2 %).

Figura 2: Formas de aquisição do conhecimento sobre insetos pelos moradores
da Serra do Passa-Tempo, município de Campo Maior/PI, Brasil.

Como observado na Figura 2 os pais possuem um papel preponderante na influência perceptiva sobre os insetos, especialmente na fase da infância através de frases de alerta e observações sobre a presença desses animais no seu cotidiano. Contudo, a transmissão de conhecimento ou influência perceptiva sobre os insetos, não parece ser exclusiva dos indivíduos mais velhos, mas também pode ocorrer através dos irmãos, ou seja, indivíduos de mesma geração. Isso confirma o que diz Lopes et. al. (2014), em que os primeiros contatos com insetos ocorrem na infância, sejam diretos ou indiretos, isto é, por citação originária de pessoas da família. Posey (1987) afirma que os conhecimentos etnoentomológicos são transmitidos de geração em geração pela tradição oral, sendo isto um veículo importante de difusão da informação biológica.

A aquisição de conhecimento através "da vida", ou seja, a observação particular e as experiências individuais são também importantes nessa construção cognitiva.  Segundo Soldati (2013), sobre a transmissão do conhecimento e a origem social das informações, os seres vivos além de informações ontologicamente adquiridas, apresentam a característica de incorporar constantemente dados disponíveis no meio ambiente, através da cognição. Para Hewlett, Cavalli-Sforza (1986), o conhecimento pode ser culturalmente transferido, de forma vertical quando acontece dos pais para os filhos, horizontal entre indivíduos de mesma geração e oblíquos quando acontece entre gerações que não sejam os pais, tendo forte influência de professores, da mídia, de um líder, entre outros. A concepção sobre os insetos também sobre influências exógenas, ou seja, aquelas que não são construídas de forma interna por e entre os membros do grupo social, nesse caso das comunidades rurais, mas que são mediadas, por exemplo, pela escola e pelo jornal (mídia). A escola tem um papel importante na desmis­tificação de informações equivocadas e distorcidas sobre os insetos, onde o aluno tem a oportunidade de construir conceitos mais realistas e quebrar preconceitos existentes com esses animais (Trindade et. al. 2012; Lopes et. al. 2014).  As tecnologias de informação e comunicação (TIC) estão cada vez mais presentes no meio rural influenciando a forma como os insetos são vistos e influenciando atitudes perante a eles, mas em muitos casos de forma negativa (Alencar et. al. 2012; Trindade et. al. 2012).

Além de serem percebidos e reconhecidos como recursos alimentar, terapêutico e lúdico, como pragas na agricultura e como vetores de doenças, os insetos também estão presentes no ideário popular dos moradores da Serra do Passa-Tempo, como seres profetizadores, ou seja, entomoáugures (Quadro 1) que despertam interpretações semióticas quando aparecem nos ambientes.

Quadro 1: Entomoáugures relatados pelos entrevistados da Serra do Passa-Tempo,
município de Campo Maior/PI, Brasil.

 

 

Agrário

"A borboleta é bom sinal na roça" ..."A mosca bota catinga na plantação, se tiver muito na roça não dá certo"..."O mané-mago pendurado na roça é sinal ruim" (E 53, 60 anos).

 

 

 

 

 

 

 

 

Meteórico

" A cigarra canta no verão avisando que vai chover" (E 59, 55 anos).

"A formiga faz o caminho com o "fí" na cabeça, ela sabe que vai chover, é que ela sabe que ali vem água, se vai chover amanhã hoje ela começa a fazer o caminho dela, a formiga é moleca, ela adivinha, pode esperar!"(E 46, 64 anos).

" O cupim quando tá pra chover, ele encasca, se encascar pode ter na certeza que daqui uns dia chove" (E 59, 55 anos).

"Quando a gente vê maribondo fazendo casa, se agazaiando é por que vai ter inverno ...  quando tem muita catirina ao redor da casa da gente não espere inverno não, dá só uma chuvinha passageira ... se muita minhoca passar caminhando naquele dia chove" (E. 56, 75 anos).

"Quando o canudo (abelha) fica todo assaranhado é por que tá pra chover, ele fica agitado e rodando pelos pau" (E 59, 55 anos).

"Se a borboleta tá subindo pro rumo do nascente não tem inverno (E 14, 39 anos).

Ditoso

"A esperança quando aparece é uma coisa boa que ela vem trazendo" (E 39, 28 anos).

 

 

Funério

"A rasga mortalha se passar é adivinhando morte"( E 21, 74 anos).

"O canto da cigarra é aviso de morte ou então de notícia ruim" (E 61, 83 anos).

 

Temporal

"Quando dá no mês de dezembro, a cigarra começa a cantar bonito, aquilo é bom de ser recordar de coisa que já se passou"(E 46, 64 anos).

A presença, a passagem ou o canto (ruído) de alguns insetos em determinados locais, como na roça, em casa, na mata, entre outros, pode sinalizar coisas boas ou ruins.  Costa Neto (2002) explica esses conjuntos de presságios ligados aos insetos como Meteórico quando os insetos sinalizam condições climáticas, por exemplo, chover ou não; Ditoso quando traz boa sorte; Funério quando avisa morte; e Temporal quando o inseto sinaliza um período específico do ano. Nesse estudo, observou-se um entomoáugure que sinaliza condições da produção agrícola, chamado aqui de Agrário, onde a borboleta representa um bom sinal, fartura na roça, em oposição a mosca e o mané-mago que indicam pouca produção ou perca na colheita.

O maior número de insetos pressagiadores está incluído no entomoáugure meteórico, sinalizando a presença ou ausência de chuvas ou do inverno, que na região é sinônimo de um período chuvoso. O inverno é marcado pela presença de insetos no cotidiano dos entrevistados, onde 62% relataram ser nessa época quando eles os vêem mais. Insetos sinalizadores de chuva e marcados pela presença do inverno também foram registrados no estudo de Souza Júnior, Lima (2014) na zona urbana de Teresina, capital do Piauí. Ulysséa et. al. (2010) relatam que o canto das cigarras nas comunidades rurais de Ribeirão da Ilha, em Santa Catarina, é sinal de chuvas próximas, se cantarem pela manhã a chuva a tarde já cai. Costa Neto (2006), estudando o significado semiótica dos insetos no distrito de Pedra Branca, na Bahia, também verificou essa associação do canto da cigarra, assim como o comportamento da formiga, como prenúncio de chuvas, e afirma que diferentes culturas associam a atividade de cigarras com períodos de inverno e/ou verão.  Em alguns casos um mesmo inseto pode sinalizar coisas boas, em um sentido, e ruins em outro, como verificado no Quadro 1, onde a cigarra pode sinalizar chuvas, o que para o sertanejo é algo positivo, mas ela também pode sinalizar um aviso de morte. Silva, Costa Neto (2004), observaram esse antagonismo presságico direcionado a esperança na comunidade Olho D'água na Bahia, se ela pousar em uma pessoa é sinal de sorte, se ela aparecer seca no outro dia morrerá alguém.

Algumas informações acerca da biologia de insetos podem ser verificadas entre os entrevistados das comunidades rurais da Serra do Passa-Tempo, além da percepção desses animais como agentes polinizadores, como seres que competem entre si, e que possuem ciclos de vida específicos, relações tróficas também são percebidas, por exemplo:

"Tem insetos que livram um dos outros, dizem que a cobra engoli o sapo e o sapo também come mosca e grilo" (E 22, 38 anos), "A aranha faz armadilha e se alimenta da muriçoca, então ela limpa o ambiente, ela é sua parceira, sua amiga, ela tem essa qualidade" ( E 14, 39 anos).

 E os mesmos ainda relataram eventos de biotransformação de insetos, como:

"A lagarta vira borboleta" (E 22, 38 anos); "O carambolo é o dinossauro do passado é por que diminuiu, mas você pode ver que parece" (E 14, 39 anos); "O piolho-de-cobra faz parte da mesma cascavel, são parentes" (E 46, 64 anos).

Na visão de Kellert (1993), os agricultores possuem conhecimento limitado sobre os invertebrados, mas tendem a observar e passam a ter atitudes mais positivas em relação a esses animais quando os mesmos apresentam um valor utilitário, nesse caso o valor utilitário expresso por "insetos que livram um dos outros" e "ela é sua parceira, tem essa qualidade".  Essas observações positivas sobre o comportamentos dos insetos são importantes do ponto de vista conservacionista, pois pode mediar o aspecto negativo direcionado a esses animais que influenciaria na matança dos mesmos. Essa comparação do carambolo com o dinossauro e piolho-de-cobra com a cobra cascavel está relacionado à aparência percebida. Silva, Costa Neto (2004) falam que características como morfologia e hábitat são elementos importantes nas ontogenias populares. Para Kellert (1993), é uma tendência humana psicológica estabelecer relações causais sobre a morfologia externa de insetos e crenças humanas. Ainda, nessas observações populares, é comum os animais percebidos como insetos mudarem de categoria zoológica (Costa Neto, 2004). Em geral, informações sobre a biologia dos insetos, como comportamentos, relações ecológicas e ontológicas são frequentemente observadas nos estudos etnoentomológicos sobre percepção (Ulysséa et. al. 2010; Alencar et. al. 2012; Carvalho et. al. 2014).

Os sistemas de classifica­ção, conceituação e conhecimentos so­bre a biologia de insetos são percebidos e construídos de formas diferentes de acordo com a sociedade estudada (Petiza et. al. 2013).  De acordo com Santos (2011), a compreensão das perspectivas ontológicas de diversas culturas pressupõe-se primeiro o entendimento da dualidade entre natureza e cultura, e a depender da cultura onde estão inseridos, os seres humanos possuem formas de elaboração de pensamento e concepções diferentes.

4. Conclusão

Nas comunidades estudadas, os animais conhecidos como insetos compõem um número grande de animais, dos quais muitos não são classificados dentro da categoria lineana Insecta e esse motivo repousa na forma como eles os percebem que em geral é de forma negativa, como animais portadores de alguma nocividade, causadores de injúrias, ofensas, e perturbações, indo ao encontro da teoria da ambivalência entomoprojetiva. De acordo com hipótese levantada, alguns insetos também são vistos de forma positiva, e muito se deve a valores estéticos, presságicos, ecológicos, usuais e comportamentais percebidos e incorporados pelos entrevistados, tendo forte influência na condução dessas percepções a transmissão de conhecimento pelas gerações, a escola e a mídia, ainda de suas próprias experiências individuais e coletivas.

Referências

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1. Biólogo, mestrando do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Meio ambiente da Universidade Federal do Piauí. Teresina, Piauí, Brasil. E-mail: almeidanetobio@hotmail.com

2. Biólogo. Prof. Dr. do departamento de Ciências Biológicas da  Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Feira de Santana, Bahia. Brasil.
3. Agrônomo. Prof. Dr.  do departamento de Fitotecnia da Universidade Federal do Piauí - UFPI. Teresina, Piauí. Brasil

4. Bióloga. Profa. Dra. do departamento de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Piauí - UFPI. Teresina, Piauí. Brasil


Vol. 36 (Nº 11) Año 2015
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