Espacios. Vol. 32 (4) 2011. Pág. 46


Significados do processo de sucessão em uma empresa familiar

Meanings of the succession process in a family business

Significados del proceso sucesoral en una empresa familiar

Daniela Meirelles Andrade, Juvêncio Braga de Lima y Luiz Marcelo Antonialli


3. Metodologia

O presente estudo constitui-se um estudo de caso, envolvendo pesquisa qualitativa, procurando-se apreender, em profundidade, as representações sociais sobre o processo de sucessão de uma empresa familiar.

A empresa familiar estudada atua no ramo de transporte de cargas e está localizada no sul de Minas Gerais. Em 2007, estava listada entre as 20 maiores do setor de transporte rodoviário de cargas do Brasil. A família é composta por 7 irmãos, sendo 2 homens e 5 mulheres. A terceira geração é formada por 14 netos do fundador. A empresa possui, hoje, 51 anos de existência, tendo sido iniciada com a compra de um caminhão em sociedade entre dois cunhados. O atual proprietário fundador adquiriu a parte do sócio após um ano. Somente em 1966 a empresa foi registrada e houve ampliação da área de atuação, de uma cidade de médio porte para a capital, incluindo, em seguida, mais uma capital e várias cidades.

 Posteriormente, a empresa passou por uma fase de diminuição do volume de negócios. A entrada da filha mais velha coincide com esse período difícil da vida da empresa. A empresa foi dirigida pelo fundador, com o apoio da filha mais velha, por um período de 23 anos. A partir de então, houve plena expansão. O ingresso de dois filhos homens ocorreu em um terceiro momento, considerando que há uma diferença de 10 anos entre um deles e a irmã.

A observação da história da empresa permite avaliar que uma outra grande mudança ocorreu com a assinatura de contrato com uma grande empresa de autopeças. Nessa fase, ocorreu nova mudança de sede, a aquisição de novos caminhões e a expansão de atividades para maior número de empresas no setor de autopeças. Na atualidade, além de atuar no transporte de cargas, suas atividades envolvem fretamento e turismo. No setor de transporte de cargas, atua no segmento de autopeças, de borracha, de ferro e de aço, pneus, cargas fracionadas, tintas, além de outros.

Constata-se que, na medida em que se expandiram as atividades da empresa, houve gradativa implantação de práticas profissionalizadas de administração. Ou seja, houve divisão de tarefas em que cada um dos diretores passou a ser responsável pelo seu setor, evitando a sobreposição de atividades e caracterizando a divisão do poder empresarial que antes era totalmente concentrado. Além disso, foram implantadas práticas relacionadas com a implementação da ISO 9000.

A composição societária da empresa é constituída por 24% pertencentes à filha mais velha, cabendo 20% a cada um dos dois filhos homens; as demais quatro filhas detêm 8% cada uma e por último o fundador, com 4%. A distribuição de poder entre os membros da família que trabalham na empresa é menos homogênea entre a filha mais velha e os dois filhos homens, constituindo um trio, identificado como a direção da empresa.

Neste estudo optou-se por uma metodologia de natureza fenomenológica por possibilitar compreender o significado que os acontecimentos e as interações têm para pessoas, em situações particulares (BOGDAN e BIKKLEN, 1994). Buscou-se enfatizar aquilo que faz sentido para o sujeito em relação ao fenômeno analisado, tal como percebido e manifestado pela linguagem; assim, valoriza-se aquilo que é significativo ou relevante no contexto em que a percepção e a manifestação ocorrem. Trata-se, finalmente, de transcender a descrição, ou seja, formar ou construir redes de significados (BICUDO, 2000).

A fenomenologia e a teoria das representações sociais compartilham dos mesmos pressupostos ontológicos sobre a realidade, incluindo, por exemplo, a interdependência entre pensar e falar (MOSCOVICI, 2000), viabilizando o desenvolvimento deste estudo em profundidade, realizado sob a forma de estudo de caso.

A pesquisa sobre o significado do processo de sucessão na empresa constituiu uma pesquisa qualitativa, em que o design foi construído sob fundamentos ontológicos e epistemológicos orientados pela perspectiva fenomenológica: a consideração da realidade investigada como múltipla, envolvendo polaridades válidas na perspectivas dos atores, construções por eles veiculadas e apreendidas pelo pesquisador, processo pelo qual o conhecimento é produzido, tendo em vista sempre a busca da reconstrução de fatos e observações em seu conjunto e, essencialmente, dos discursos (SILVERMAN,1993; GUBA e LINCOLN, 1994). As técnicas de pesquisa utilizadas foram a entrevista pessoal em profundidade, a observação não participante e a análise documental. Para tal, foram realizadas entrevistas com o fundador, os sete membros da segunda geração, dos quais três atuam diretamente na empresa, além de um membro da terceira geração, que também trabalha na empresa. Também foram entrevistados dois agregados (genros), os quais exercem funções administrativas. A pesquisa foi realizada no período de maio a dezembro de 2003. Foi empregado um roteiro estruturado, o qual constitui uma relação de tópicos previamente estabelecidos de acordo com a problemática central do estudo (ALENCAR, 1999 e HAGUETTE, 1987).

 Neste estudo, recorreu-se à observação não participante, tal como exposta por Brymann (1989) ao definir graus de participação do pesquisador, segundo quatro tipos de pesquisa organizacional qualitativa, considerando-se que se privilegiou a entrevista. Assim, a observação ocorreu nas várias visitas à empresa, nos intervalos de entrevistas, de modo que o pesquisador permanecia na periferia da interação social, nesse processo. Mas, foram feitos registros de modo não sistemático em caderno de campo. Para complementar a coleta de dados, foram analisados documentos oficiais da empresa, tais como relatórios e sínteses de palestras, a fim de captar informações adicionais sobre o processo de sucessão.

Procedeu-se à análise dos dados utilizando-se a triangulação de técnicas, conforme proposto por Alencar (1999). Nesse sentido, buscou-se fazer um “mix” de técnicas (análise do discurso, análise das representações sociais e a formação de redes de significados), identificando as representações e o sentido do processo de sucessão para os entrevistados.

Em uma primeira etapa, foi feita a análise do discurso, criando redes de significados e sínteses coletivas dos temas trabalhados. Contudo, o presente estudo buscou mesclar as abordagens teóricas das representações sociais propostas por Spink (1995) com as redes de significados proposta por Bicudo (2000). A rede de significados descreve o significado geral dos conteúdos empíricos e constrói um sistema comum de combinações dos significados universais (Bicudo, 2000), com o objetivo de conseguir tantas representações quanto possíveis do significado atribuído ao fenômeno.

Para a construção da rede de significados adotaram-se os seguintes critérios: efetuou-se em um primeiro momento as entrevistas com diversos membros da família; em um segundo momento foi feita a transcrição de todas as entrevistas, na íntegra. Após a transcrição realizou-se a leitura flutuante de todo o material, com o intuito de absorver similaridade e divergências entre os diversos discursos existentes. Foi criada uma síntese de cada entrevista, com o objetivo de trabalhar com a redução do pensamento, no sentido de buscar elementos similares. Com a leitura flutuante, de modo exaustivo, das sínteses criadas, foi possível identificar as primeiras redes de significado, que podem ser entendidas como os grandes blocos de pensamento, onde o discurso de cada ator recebe um sentido próprio e em algumas situações com dimensão bipolar, ou seja contraditório. Dentro deste universo de sentidos, foi possível criar a rede de significados do processo de sucessão de uma empresa familiar.

4. Rede de significados do processo de sucessão na empresa familiar estudada

A sucessão constitui um momento relevante na vida de uma empresa familiar, pois se trata de garantir sua continuidade. Antes de constituir-se em um evento único, o processo de sucessão que ocorre quando um velho líder se aposenta e “passa o bastão” a um novo líder, compreende um período movido por um desenvolvimento constante e nem sempre gradativo. No caso estudado, a organização está passando pelo primeiro processo de sucessão, no qual a presença do fundador, a sua história e a sua personalidade influenciam o desenrolar desse período.

A presença do velho líder não impede, entretanto, que se avance sobre a compreensão de aspectos da sucessão, tais como o conhecimento da forma de atuação dos novos líderes na diretoria da empresa, questionando-os sobre seus planos para o futuro empresarial, incluindo a apreensão de seu dinamismo e a visão sobre o futuro da empresa.

Por outro lado, as evidências permitem esclarecer como acontece a relação entre os membros da família que trabalham na empresa e os que não o fazem, em relação aos laços de confiança. Verifica-se a preocupação dos filhos sócios funcionários em informar às filhas sócias não funcionárias sobre as decisões empresariais. Isso é expresso pela concepção de certa busca de relação harmoniosa e de confiança, fato que pode incrementar o processo de reconhecimento do papel da nova liderança.

No caso estudado, os filhos sócios funcionários afirmam que trabalham em equipe por meio de cooperação, embora cada um apresente habilidades específicas e complementares. Está presente o discurso sobre o fato de que o fundador instituiu uma posição hierárquica (ordem de nascimento) entre os filhos sócios-funcionários. É uma regra respeitada por todos; todavia, não se sabe se a mesma prevalecerá na ausência do pai, embora, no momento da pesquisa, exista plena aceitação. Tal aceitação pode ser apreendida, ao mesmo tempo em que se abre um processo de conjecturas face ao futuro.

 Uma rede de significados sobre o processo de sucessão na empresa estudada está apresentada na Figura 1, a qual está organizada em dois eixos relativos às dimensões das práticas correntes: a sucessão planejada por meio de regras empresariais e familiares e a sucessão emergente presente no discurso dos entrevistados, todos repletos de sentidos, possibilitando emergir novas tramas de idéias.

A escolha do novo sucessor implica, segundo as associações dos entrevistados, em compreender duas perspectivas, envolvendo tanto aspectos racionais e objetivos quanto um caráter emocional e afetivo. A primeira perspectiva envolve certo bloqueio de pensamento sobre o fato da sucessão, verificando-se, entretanto, a expressão de um discurso em face da realidade. A trama de idéias, na perspectiva dos entrevistados em relação à presença/ausência do fundador, emerge em um duplo sentido: por um lado, está posta uma questão de propriedade, na medida em que os membros da família que atuam na diretoria seriam os maiores acionistas; de outro lado, emergem aspectos de caráter emocional, evitando-se refletir sobre uma possível ausência do pai do âmbito das atividades empresariais. A presença do fundador na empresa, mesmo não tendo uma função executiva específica, é considerada importante. Ela simbolizaria uma proteção dos direitos de todos, de modo particular das filhas também sócias, no sentido da expressão sobre sua autoridade formal, conjugando autoridade sobre a empresa e sobre a família.

A segunda perspectiva envolve o reconhecimento de que a presença do pai por tempo ilimitado seria importante, mas existe a necessidade da escolha do sucessor. O sentido atribuído à escolha do sucessor aparece em tom racional, pois precisam preparar-se para lidar com os desafios da empresa. Registram-se associações presentes no discurso de que a sucessora seria a filha mais velha, opção definida por meio de uma hierarquia instituída pelo pai. Mas também se verifica que emerge uma outra trama de idéias, em que o sucessor não seria uma figura única (filha mais velha), centrando-se, ao contrário, em uma figura triangular, formada por ela própria e pelos dois irmãos, trio que atualmente compõe e controla a diretoria da empresa.

A filha mais velha emerge como sucessora, havendo reconhecimento de um discurso formalizado pelo pai. Formulações associadas trazem a elaboração sobre sua capacidade de representar a empresa, ao mesmo tempo em que se mencione a necessidade de “pulso firme” e adequação às exigências do mercado. Por outro lado, ela seria a pessoa que herdou as características do pai e, assim, na ausência dele, continuaria a responder pelos direitos globais da mesma forma que ele. No mesmo sentido, emerge que a filha mais velha seria capaz de preservar antigas regras, como a distribuição homogênea de resultados entre os irmãos.

A trama de idéias presentes no discurso em torno da figura do trio ocorre numa expectativa de complementação mútua entre a irmã e os dois irmãos, no sentido do respeito e da sinergia existente entre eles.

Ao pensarem na realidade da empresa, os atuais potenciais sucessores, os filhos atualmente funcionários e demais membros da família entrevistados, expressam o reconhecimento de que o trio teve acesso fácil à organização empresarial, dada a necessidade sentida pelo pai em contar com pessoas de sua confiança para gerenciá-la. Mas, isso diria respeito somente ao acesso, pois, está claro que se considera o papel desses membros da  segunda geração,  na construção e solidificação da atual estrutura empresarial.

 A trama de idéias presente na fala dos membros da segunda geração, em relação às regras, ocorre em diversas perspectivas. Assim sendo, as exigências seriam feitas pelo bem da instituição e funcionam como estímulo aos novos membros da família que ingressam na empresa, evitando-se criar expectativas sobre garantias de inserção, apenas pelo fato da condição familiar. Nesse sentido, mencionam-se expressões sobre a necessidade de construção de espaço próprio.

Argumenta-se que, na construção desse espaço próprio, devem ser levadas em consideração a formação acadêmica do possível sucessor e a experiência prévia em filiais ou em outras empresas, para que o mesmo execute um bom trabalho na organização. Entretanto, ao lado dessa perspectiva, verifica-se a consideração de aspectos familiares que emergem a partir de significados do âmbito do lar, os quais vislumbram que qualquer tipo de escolha nasce da própria pessoa; os pais são condutores dos filhos, ou seja, apresentam a oportunidade aos filhos, netos ou bisnetos do fundador, para irem convivendo, desde cedo, no cotidiano empresarial, embora a decisão final de fazer carreira no empreendimento seja tomada pela própria pessoa.

 Aquilo que deve ser considerado como regras empresariais seriam os requisitos relacionados com o diploma universitário, o qual confirma a habilidade de um futuro membro da família ingressar na empresa para exercer determinada função e possibilita conhecimento específico sobre uma área de atuação. Tal condição, associada à busca por experiências anteriores por meio do trabalho em empresas correlatas ou filiais, possibilitaria adquirir conhecimento prático. Diferentemente do trio, há a concepção de que a entrada dos futuros membros da família como funcionários será mais difícil, embora comprovem a perpetuação da organização. Existem associações de que os filhos do trio seriam as pessoas mais adequadas para entrarem para a organização, pois foram educados dentro dos mesmos padrões que o avô instituiu. E, na perspectiva das regras pessoais, emergem associações relacionadas com a vocação, o interesse, a competência e a capacidade, mas também se valorizam, associados a essas características, a necessidade da vontade e o interesse do membro futuro entrante em participar da empresa.

A sucessão na empresa familiar pesquisada apresenta-se como um processo complexo, não se restringindo ao simples fato da substituição de líderes ou transmissão de poder. Com a rede de significados formada a partir do tema central “processo sucessório”, foi possível desvendar a presença de idéias e práticas divergentes. Ressaltam-se, no caso estudado, ao mesmo tempo idéias e práticas em torno de uma noção de sucessão planejada ou não, mediadas pela natureza da organização em sua vertente empresarial e familiar.

redes entendidas como interligações de categorias, mostrando o próprio tecido dos sentidos percebidos e dos significados atribuídos. Não indicam ordem lógica, nem hierárquica de valores. Podem ser interpretadas a partir de qualquer ponto, porém, este nunca é isolado, mas parte constituinte da rede (Kluth, citado por Bicudo, 2000).


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