Espacios. Vol. 28 (3) 2007. Pág. 3

Uso do Poder de Compra Governamental e o Setor Brasileiro de Software e Serviços

Uso del poder de compra gubernamental en el sector brasileño de software y servicios

Use of the power of governmental purchase in the Brazilian sector of software and services

Angela Maria Alves, Cássia Isabel Costa Mendes, Ana Maria Alves Carneiro da Silva, Cassio Garcia Ribeiro, André Tosi Furtado y Carolina Vaghetti Mattos


2. A legislação brasileira sobre compras governamentais

A questão do tratamento preferencial para empresa brasileira nas compras governamentais suscita muita discussão e divergências entre os doutrinadores e operadores do direito.

Dallari (2000) apresenta que a Constituição Federal brasileira, de 1988, admitia em seu artigo 171 o tratamento preferencial à empresa brasileira de capital nacional No entanto, a Emenda Constitucional no. 6, de 15/08/1995, revogou este dispositivo, mas em seu art. 170, IX[i], preservou o “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país”.

Com a revogação do art. 171 da Constituição Federal, a preferência outrora concedida à empresa brasileira de capital nacional foi afastada, de modo que, com essa alteração, deixou de existir no mundo jurídico o conceito de empresa brasileira de capital nacional.

No entanto, cabe analisar se com o art. 3º da Lei 8.248/91 (lei de informática), alterado pela Lei 10.176/2001, remanesceria alguma espécie de privilégio para bens e serviços de informática produzidos por empresas brasileiras de capital nacional, e é neste ponto que há divergência entre os doutrinadores, alguns advogando que o citado preceito foi revogado, e, outros, de que ele permanece vigente, possuindo as empresas nacionais privilégio em tais compras governamentais, o que se verá, sucintamente, a seguir.

A Lei no. 10.176, de 11/01/2001, alterando, parcialmente, a Lei no 8.248, de 23/10/1991, dispõe, em seu art. 3o. que os órgãos e entidades da Administração Pública Federal e organizações sob o controle direto ou indireto da União darão preferência, nas aquisições de bens e serviços de informática e automação, observada a seguinte ordem: i) bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País; e ii) bens e serviços produzidos de acordo com processo produtivo básico, na forma a ser definida pelo Poder Executivo.

A pergunta suscitada é concernente à possibilidade jurídica de serem objetos de direito de preferência os bens e serviços de informática desenvolvidos com tecnologia nacional e com significativo valor agregado local, na forma do Decreto 1.070/94, que regulamentou a Lei. 8.248/91, e alterada pela 10.176.

Freitas (2002), em parecer emitido ao Ministério da Ciência e Tecnologia, firmou entendimento de que está em vigor o direito de preferência em relação aos bens e serviços produzidos com tecnologia nacional ou com significado valor agregado nacional, com fundamento constitucional nos artigos 218 e 219 da Constituição Federal[ii], sendo o primeiro para amparar o regime protecionista especial em favor do bem produzido no Brasil, e o segundo para promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica, abaixo transcritos. Portanto, o autor constata que subsiste o direito de preferência para aquisição de bens e serviços com tecnologia desenvolvida no país, elencando, inclusive, os documentos comprobatórios de tal condição.

Moreira e Moraes (2002) seguem esta corrente e afirmam que é ressalvada a aplicação do princípio de tratamento nacional apenas para as aquisições de bens e serviços com tecnologia desenvolvida no Brasil e aos bens e serviços produzidos em conformidade com o processo produtivo básico, de acordo com o art. 3o, da Lei 8.248/91.

A corrente doutrinária divergente desta posição defende que não subsiste tal preferência. Entre os autores desta corrente, destaca-se Dallari (2000, p. 92), o qual defende que: 

A derrogação do artigo 171 da Constituição da República importam na derrogação de toda e qualquer norma infraconstitucional instituidora de privilégio ou preferência que decorra, direta ou indiretamente, de ser a empresa brasileira ou estrangeira, talvez com a isolada ressalva – aí arrimada no artigo 219 -, dos bens de informática, na medida em que lei federal específica consagrasse direitos de preleção quanto àqueles produzidos no país.

Contudo, Dallari (2000) afirma que esta ressalva para os bens de informática é inconsistente, e cita o caso concreto submetido ao Tribunal de Contas da União, cujo plenário julgou improcedente representação que apresentava como ilegal edital de licitação para aquisição de bens e serviços de informática, que não previa o direito de preferência em favor de bens produzidos no país.

Outra previsão de direito de preferência encontra-se no artigo 3º, da Lei 8.666/93[iii] – que trata de Licitações e Contratos da Administração Pública –, o qual assegura preferência aos bens e serviços produzidos ou prestados no país, como critério de desempate

Bittencourt (2005) afirma que é totalmente válido o inciso II, do § 2º, do art. 3º, da Lei nº 8.666/93, considerando que a Emenda Constitucional 6/95 não negou a possibilidade do direito de preferência “tão significante para o desenvolvimento do importante setor de informática brasileiro, consolidando, inclusive, a política industrial aprovada pelo Congresso Nacional, dando-se preferência nas licitações aos produtos e serviços fabricados no País”.

Todavia, na prática dos processos licitatórios, em que pese a aplicação do critério de desempate privilegiando as empresas brasileiras, o que se observa é que as exigências prescritas nos editais publicados pela União, Estados ou Município desqualificam as empresas nacionais e principalmente as de pequeno e médio porte, em decorrência da quantificação para faturamento, números de empregados, tempo de mercado, número de implementações, entre outras. Ressalta-se que é recorrente no mercado de desenvolvimento a presença de pequenas e médias empresas que dispõem de tecnologias de ponta, no entanto, com as exigências dos editais publicados elas se deparam com a necessidade de celebrar parcerias com empresas de grande porte para viabilizar sua participação no mercado de compras do setor público. Caso seja alterado este processo, as pequenas e médias empresas da área de tecnologia da informação terão melhores condições para competir neste mercado, tendo como conseqüências positivas a geração de empregos e o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil, garantindo ao governo um menor investimento e uma maior receita (FGV e Câmara Brasileira do Comércio Eletrônico, 2002).

As divergências doutrinárias quanto à aplicação ou não do direito de preferência aos bens de informática desenvolvidos com tecnologia nacional tendem a se acirrar no ambiente competitivo de internacionalização das atividades econômicas – financeiras, produtivas e comerciais – o que é lamentável. É necessária uma análise extensiva do marco regulatório atinente à matéria não apenas do ponto de vista do direito tecnicista, mas ampliando para outras dimensões – tais como a econômica, industrial, social e tecnológica, visando promover o desenvolvimento econômico do país por intermédio do fortalecimento da indústria nacional.

Enquanto no Brasil as discussões gravitam em torno da aplicabilidade e/ou legalidade do direito de preferência, em outros países, notadamente os desenvolvidos, esta prerrogativa é utilizada amplamente com instrumento para fortalecer a economia nacional, concedendo preferência às empresas domésticas, em especial às de pequeno porte. No Estados Unidos, por exemplo, destaca-se a destinação das compras governamentais ao mercado doméstico, em conformidade com exigências prescritas nas normas e procedimentos de compras governamentais, derivadas das disposições inseridas nos programas Buy American Act, Balance of Payments Program e Small Business Act. As políticas de apoio às pequenas empresas são amparadas nas diretrizes definidas no Small Business Act, o qual foi aprovado pelo congresso daquele país em 1953. Este programa definiu os princípios básicos para a atuação do Poder Executivo em apoio às pequenas empresas, apregoando que o Estado deve apoiar, assistir e proteger, na medida do possível, os interesse destas empresas.

O Small Business Act determina que todas as aquisições de bens e contratações de serviços e obras públicas de valor entre US$ 2.500 e US$ 100.000 sejam automaticamente destinadas às pequenas empresas estadunidenses, além de dar preferência a empresas de pessoas e grupos sociais em desvantagem econômica e social. Para o cumprimento dessas determinações por parte dos órgãos e empresas públicas, foram criados rigorosos mecanismos de acompanhamento e avaliação dos processos licitatórios. É importante destacar que a política de preferência às pequenas empresas estabelecida no Small Business Act, não pode ser derrogada por acordos internacionais firmados pelo Estados Unidos. Logo, evidencia-se a forte restrição à entrada de empresas estrangeiras no mercado estadunidense de compras governamentais (MOREIRA e MORAES, 2002, p. 89).

Portanto, destaca-se o caráter explicitamente protecionista e seletivo do arcabouço legal que rege as compras das entidades governamentais estadunidenses, em contraste com as controvérsias acerca da aplicabilidade ou não do direito de preferência no Brasil, de modo que o país perde a oportunidade de utilizar um importante instrumento de apoio ao desenvolvimento de empresas domésticas, sobretudo daquelas com necessidades especiais como as MPES.

O objetivo da próxima seção é introduzir a discussão sobre o setor de software brasileiro, enfocando a capacitação das empresas que atuam setor, com destaque para as micro e pequenas, em termos de fornecimento de software e serviço para o setor público.

[i] “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.”

[ii] Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas. § 1º - A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências. § 2º - A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. § 3º - O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho. § 4º - A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho. § 5º - É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica. Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.

[iii]  Artigo 3º - A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa par a Administração e será  processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (...)  Parágrafo 2º - Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços: (...) II – produzidos no País.

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